quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Ciência poética


Numa das adoráveis tirinhas de Liniers, o gato Fellini pergunta à amiga Enriqueta – garotinha de eterno vestido azul, profundo amor à leitura e sensibilidade comovente – de onde vem o vento. Ela não hesita: "Vem dos suspiros exalados por gente apaixonada"; e, ante a réplica felina de que isso não soa muito científico, esclarece que está "desenvolvendo um conceito de ciência poética". Fiquei desde logo apaixonadamente suspirosa pelo conceito, embora de forma alguma deseje criar furacões. A ciência é sacratíssima em si, há que ser inteiramente amada pela nudez forte da verdade que apresenta, não discuto – não seria eu a questioná-lo; porém não serei eu a questionar a poesia tampouco, e acredito que o manto diáfano da fantasia assente leve e bem sobre várias ruas de pensamento, quando a dúvida não separa vida e morte, quando há tempo para a demora inofensiva, quando o cronômetro abre agenda para o desvio lúdico. Em instantes minuciosamente guardados para o delírio, por que não playgroundear na ciência poética? É saber de gente também grande, que quer higienizar os neurônios de alguma incapacidade de espanto e reconectá-los à doce perplexidade que baixa nossa bolinha.

Assim, pelo mesmo manual que descreve o vento como suspiros de apaixonados, não me admiraria descobrir, por exemplo, que o arco-íris é feito de fantasminhas de borboleta, ou de lembranças das primeiras flores recebidas no namoro; que a aurora boreal é uma festa ancestral de vaga-lumes; que nuvens são o sonho dos anjos; que terremotos são a rave dos gigantes; que oceanos são o choro dos saudosos (Fernando Pessoa, aliás, concorda). Não me surpreenderia se os diferentes relevos mundiais formassem peças dum xadrez de titãs, se a lava fossem restos mortais de dragões – e a neve, de unicórnios –, se dentes-de-leão se provassem sementes de fada, se gafanhotos e esperanças resultassem verdes por realizarem transporte uber-eatico de clorofila. Se joaninhas, com sua armadura fashion, se mostrassem não os bibelôs gordinhos que sempre guardamos na caixa da fofura, mas sim nada menos que samurais ou Cavaleiras do Zodíaco na versão inseta.

Poético-cientificamente, raios são aparições de árvores já tombadas (por que mais teriam tamanha preferência por assombrar árvores vivas?), estalactites e estalagmites são fósseis de espadas, vitórias-régias são Ilhas Fiscais para minibailes, icebergs são os dentitos de leite do planeta, borboletas são os anjos da guarda das flores – olha elas e eles aí de novo –, bioluminescência é pólen de estrela, luar é lençol de luz, ondas são inexatidões que a gente às vezes nem sente, materializadas em água e poesia.

Pessoa concordaria.

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