sábado, 14 de agosto de 2021

Um limite ao erro


Disse o genial Bertolt Brecht (morto há exatos 65 anos) em A vida de Galileu: "A ambição da ciência não é abrir a porta do saber infinito, mas pôr um limite ao erro infinito". Inacreditável como, décadas depois de perdermos o dramaturgo, essa frase sapateia atual e urgente sobre nosso bando de cabecinhas duras, uns estrupícios que andam por aí empenhados em combater o mau combate contra as mesmas fontes que lhes dão vida – feito uma manada de Richthofens que combinaram consigo de acabar com a (aventura humana na) Terra.

Basta que haja ocorrências como a morte tristíssima de Tarcísio Meira, por exemplo, para que venham esses espíritos suínos especializados em jogar contra e cravem: ââââin, tá vendo?, não adianta tomar vacina, ele tomou as duas doses e mesmo assim... MESMO ASSIM A MINHA MÃO NA TUA CARA, MUNDIÇA; vade retro, aparta-te de mim, negacionista dos infernos. Pois então estão fingindo não perceber que, conforme disse muito precisamente uma amiga no Face, tanto Glória Menezes quanto Sílvio Santos sobreviveram graças a essa exata vacina? Estão se fazendo de (mais) idiotas ao ignorar que a mortalidade vai diminuindo substancialmente nos lugares em que a vacinação mais vai se aligeirando? Estão teatrando ainda maior demência que a normal, ao passar por cima do fato de que o jovem, forte, saudável Paulo Gustavo poderia ter continuado conosco, e de que o jovem, forte, saudável Luciano Szafir não precisaria ter-se contaminado de covid duas vezes – sendo a segunda avassaladora e garantidora de um mês de internação, o que ilustra a história do "a melhor vacina é ter a doença" como pura balela –, caso tivesse havido imunizante para ambos na hora certa? Não, nenhuma vacina é barreira 100%mente inexpugnável contra as infecções; parece-me que nunca foi; parece-me, no entanto, que antes deste acesso de loucura generalizada nós sempre entendemos isso, sempre concordamos que 70% de imunidade são consideravelmente superiores a nenhuns, e nunca julgamos razoável pensar em renunciar aos setenta na mão por não termos os cem voando.

A ciência não é infalível, nos recorda a frase de Brecht, nem teria como sê-lo ainda, uma vez que feita por seres falíveis. A ciência é e continuará sendo, entretanto, a melhor – a única – alternativa. Não existe chance, ever, de a melhor alternativa ser o não saber. Embora por enquanto não seja capaz de nos fornecer respostas ilimitadas, a busca científica nos preserva do abismo ilimitado, do completo desamparo, do estado de nenhuma preparação e nenhuma defesa; ou alguém estaria disposto a não contar mais com airbags e cintos de segurança, apenas por não ter o juramento do fabricante registrado em cartório de que haverá zero morte em acidentes? ou alguém largaria sua casa escancarada e sem alarme em área perigosa, ou caminharia desacompanhado e cheio de objetos valiosos de madrugada numa rua brabíssima, somente porque uma pessoa conhecida foi prudente e mesmo assim sofreu assalto? ou alguém escalaria o Everest sem os equipamentos de proteção só porque inúmeros morreram no Everest COM os equipamentos de proteção? Em sã consciência, com o mínimo de sã consciência, qualquer criatura é ou deveria ser capaz de compreender o básico: o agir temerário prova exclusivamente a estupidez do burlador, não a ineficácia das regras, que nos acolchoam tanto quanto possível contra as destruições circundantes.

Ciência, com suas vacinas e apetrechos tais, é o goleiro indispensável no jogo; tê-lo não significa necessariamente ganhar sempre – não tê-lo significa, necessariamente, perder todo dia de goleada.

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