domingo, 15 de agosto de 2021

Nave-mãe


15 de agosto é dia das que andam preparando outra pessoa – o Dia da Gestante. Nunca atravessei (a não ser passivamente, é claro) nem desejo atravessar esse processo de fabricação, mas isso não impede que empatize carinhosamente com as sisters que se encontram, como diz a fofura popular, com pãozinho no forno. Também se dizia nos outroras estado interessante, não sei exatamente o porquê; mas errado não tá, é fato: produzir um ser humano é algo interessantíssimo, talvez insuperável por qualquer outra atividade, invenção, indústria, artesanato, manufatura de que se tenha notícia. Embora à mamãe ou ao papai-to-be não caiba nenhum controle na montagem, no design, na escolha das peças – o que só mostra o nível de sabedoria em que opera a natureza; do contrário, imaginem como sairia um herdeiro de Picasso, senhores –, a imponência do fenômeno é tão excessiva que se agiganta sobre tudo que há nele de involuntário. Basta, para nosso aturdimento, conceber mentalmente o que está sendo ali concebido: alguém que virá a ser o amor da vida de alguém, quem sabe uma mentora ou mentor definitivo no caminho de outrem, por que não um descobridor de curas, uma poeta, um hábil e heroico negociador de reféns, a mãe/o pai da mãe/do pai da mãe/do pai do futuro presidente ou presidenta, o apostador no talento de uma criatura que se tornará icônica na história universal, o fornecedor de uma ajuda que será crucial para que o estimulador da professora da avó de uma extraordinária cientista ou escritora ou atriz não desista da vida. Cem por cento dos que nos são, dos que nos foram e serão indispensáveis principiaram assim, em nove (ou pouco menos) meses dessa produção que configura a grande antessala do mundo.

Gestantes são, literalmente, naves-mãe que aportam terraqueozinhos neste chão complexo – sendo tudo menos máquinas, porém; é o oposto que na verdade ocorre: parece que nunca fica uma pessoa tão repleta de pessoíce, tão atravessada de humanidade, como quando se vê porta e portadora dum exemplar de nós. Não que seja uma fase romântica no sentido mais xaroposo do termo, nem que a mulher em gerúndio de maternidade vire algum tipo de santa ou heroína; vira, sim, um ser confrontado ao-mesmo-tempo-agora com um combo de eventos humanizadores – dor, medo, amor, alegria, loucuras hormonais, impaciência, curiosidade, incômodo, desconforto, picos de irritação e desejo, picos de apetite ou inapetência enjoada, sonhares desordenados, sono descompensado, ondas de devoção e de receio, de entusiasmo e de dúvida, de valentia moral e de vulnerabilidade emocional e imunológica. A gestante, entidade com a maior concentração possível de corações humanos em menor espaço, é um compêndio de gente, um catálogo, um cúmulo; não é impunemente, decerto, que aglomera em si tanta homo-sapice, e, como se não fosse suficiente a superposição física de existências, ainda fica ela sujeita ao que há talvez de mais inconveniente, de mais teimoso no quesito abelhudice alheia. Uma vez que a gestante gesta outro(s) membro(s) da espécie, toda a espécie ao redor se considera apta a bedelhar sobre absolutamente tudo, da cor do enxoval ao estilo de parto – afora a apropriação coletiva do território barriguístico, no qual até mãos desconhecidas assentam, dia sim dia sim, com zero cerimônia.

Ah, como eu gostaria de assegurar pedaços fabulosos do universo para essa gente que prepara gente. Quisera que TODAS as mamães de primeira ou de outras viagens pudessem contar com a dedicação ilimitada de seus parceiros, com o apoio irrestrito da família nuclear, com os recursos necessários para uma nutrição fortíssima de seu próprio corpo e do corpinho anexo, com a grana e o tempo e a serenidade de estruturar todo o pequeno mundo vestível e mobiliável do bebê, com a certeza de um pré-natal atento e completo, com a extinção de todos os fiscais de amamentação que se abalam ao testemunhar um ato tão lindo, com a tranquilidade de manter seus empregos e gozar plenissimamente seus direitos trabalhistas, com a convicção de haver excelentes creches e escolas no horizonte mui próximo. Quisera que cada mamacita do planeta estivesse eternamente livre de julgamentos aspones, segura e amparada para tomar as melhores decisões, amorosamente acompanhada para obter ravióli de geleia de carambola às três da manhã, inteiramente assistida para ser dispensada de forçar pernas e coluna em afazeres que pesam. É isto enfim: quisera que nada pesasse às gestantes, além dos quilinhos que vêm com a pessoa extra; quisera que toda e qualquer fabricação humana se desenrolasse embalada em leveza, dos primórdios da divisão celular até os passos de aqui fora.

Mamãezitas gerúndias: recebam minha esperança de que todas tenham, a cada correr de cada dia, uma boa hora.

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