terça-feira, 31 de agosto de 2021

O dito pelo não dito


Entendo perfeitamente a irritação demonstrada por João Vicente, no Papo de segunda de ontem, com relação àquelas pessoas que não deixam a gente se esquivar de convites para eventos. Vocês sabem, é o chato insistidor: a criatura isenta de noção que não compreende – ou finge direitinho não compreender – a intenção delicada que reside no ato de elaborar uma desculpa razoável, uma história cortês e verossímil, em ver de simplesmente fazer o sincericida e meter um "desculpe, não quero ir, não tenho vontade, preciso dormir, preciso descansar, não gosto daquelas pessoas, prefiro a morte a me enfiar numa gincana de primavera às 9 da manhã na fazenda do seu tio". Eis que nos preparamos com alegre consideração para mentir socialmente sem magoar o ser; dizemos que pena, estou com médico marcado há semanas, consulta superdifícil de conseguir; dizemos que lástima, faço curso nesse horário, é tempo de avaliação na pós, agendei visita do cara da NET, minha irmã me pediu ajuda para comprar um vestido de madrinha, vou estar em jejum de 12 horas para um exame, whatever que cumpra o papel de escusa respeitosa. Aí vem o entojo e sonda, sonda, cerca, força, busca alternativas: ah, e quinta-feira, você pode? que horas acaba a aula? é por falta de carona? – a que respondemos com 3.278.657 suspiros de autocontrole social e exercitamos toda a nossa garrinchice, na hipótese mais educada, para prosseguir na série de dribles e apresentar mais um problema para cada solução. Oh, fadiga.

Na boa: QUAL É a dificuldade de ser menos denotativo, melhorar as habilidades de leitura e interpretação comunitária e entender, vez por todas, que NÃO se deve contestar/dissecar uma desculpa? Porque das três, uma: ou o dito é mesmo verdade e acabou-se; ou é uma generosa mentirinha que só procura atenuar o impacto do não, e como tal deve ser respeitada (até porque, se alguém a fabrica, claramente não mostra vontade de estar no evento em questão, e eu ignoro qual seja o prazer de contar com a presença do esquivo a contragosto); ou é uma mentirinha de algum modo mais grosseira, e então a ação de desmontá-la apenas aumentará a irritação do desculposo e o tornará a cada segundo menos inclinado a comparecer, quiçá menos inclinado a manter a amizade. Nada, absolutamente nada se ganha com essa pressão esdrúxula, esse pequeno joguito de poder; muito se tem a ganhar ou guardar, ao contrário, com a doce aceitação dos passos da dança: um convida porque não pode deixar de convidar, o outro responde com o vou ver, não sei, talvez tenha médico no dia, o primeiro sorri afetuosamente por captar o fato de que seu parça só quer ficar em casa de pijama, o segundo fica reconhecido porque o outro compreendeu tudo fingindo que não, os dois se abraçam e se despedem, amicíssimos. Um tango que termina feliz, cada qual com uma rosa na boca. Pra que carambolas escarafunchar o discurso do outro até os extremos do pré-sal?

Não se trata de valorizar a mentira – isso nunca –, e sim de celebrar a liberdade dos acordos tácitos entre amigos, dos contratos inverbais de empatia e discrição, sensibilidade e cumplicidade. Há que ser muito e belamente cúmplice para que as fraquezazinhas sejam reciprocamente acolhidas, sem julgamento, sem rancor; há que haver muita afinação para poder ser honesto no subtexto, legível e leitor nas entrelinhas, nos entreatos, nos entrenós. Textos servem a contextos, não o oposto, e servem sobretudo a seus usuários, não vice-versa; nem transbordamentos nem securas deixam o entendimento ajeitar-se e florir como devido. Nem excessos nem faltas, nem prospecções nem indiferenças: a linguagem do afeto sabe enraizar-se na justa conta, na desnecessidade tanto da espada quanto do escudo.

Amar é poder não dizer tudo.

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