terça-feira, 3 de agosto de 2021

Coisa de não só se entender


Cheio dos versos marotos, de simplicidade complexíssima, o ator, escritor e jornalista Armando Liguori Jr. chove as melhores agulhadas: "O deputado leu um poema./ Não entendeu, e ainda achou despudorado./ Disse preferir os clássicos/ [...]// O vereador leu um poema/ Não entendeu, e ainda assim, achou inverossímil.// O prefeito leu um poema/ E achou precário, mesmo sem entender lá muito bem.// O juiz não leu um poema./ Disse que prefere biografias,/ Mesmo não lembrando a última que tenha lido// O presidente não leu nenhum poema/ Justificou, dizendo que era muita coisa escrita.// O trabalhador não tem tempo para ler poemas./ Mas, se tivesse, entenderia que poesia não é coisa só de se entender./ É mais".

Nítido, sacana e maravilhoso: poesia não é coisa de se entender, principalmente, por gente cafona e desaparelhada para sutilezas, para conotações; não é coisa que se queira ou se faça inteligível para a galera que, oca de vivências culturais, bota-se a disfarçar sua oquidão pagando pau para o que já OUVIU DIZER que é chique – produções muito antigas e muito europeias, bem entendidamente. Nada contra produções muito antigas e europeias (desde que não se esteja produzindo escravismo, colonialismo, espoliação, essas especialidadezinhas do Velho Continente), tudo contra a mania tacanha de desfazer dos nossos bailes de favela para engrandecer apenas Bach, quando podemos com imensa felicidade ter Bachles de favela fabulosos. Mas é aquilo; o que há de enorme e poético na antropofagia, na alegria que é a prova dos nove, na pululante bagunça de nosso coração criativo, na manifestação do que é poderosamente diverso e popular, autêntico e variado, sensual com a plena liberdade sensorial do termo – nada disso se revela à arrogante, endurecida cultura de manual; nada se descortina aos olhos que vestem erudição como quem veste um paletó nas costas da cadeira: a formalidade está ali porque a etiqueta imaginária a impõe, porém sequer tem a chance de transmitir um calorzito ao corpo que só a conduz de um lado a outro com objetivos de álibi, máscara e embuste.

A poesia não é bonequinha de luxo. A poesia, ainda que frequente os mais caríssimos salões, é fruta que se aprende a morder no quintal, skatear no beco, correr no terreno baldio – porque é mesmo no olhar baldio sobre tudo que, sobretudo, a danada cresce, descalça ou calçada só de memórias e borboletas, vestida apenas de entrelinhas. Se vem a usar o fraque de um soneto ou o longo de uma epopeia, não muda com isso o fato de sua essência ser nua, de sua base estar fincada nas miudezas da terra, nos grãos, nos entrelugares, nos semiespaços, nos por-enquantos, nos poréns. Poesia, se olha com paixão as estrelas, não pode mentir ao entretanto de ser feita da poeira delas, como aliás os poetas mesmos; e talvez se explique assim essa arte senhorita: poesia é a flutuação de saudade que vai do chão ao espaço. Somente os verdadeiramente contaminados pela nostalgia do cosmos enxergam (como num instinto familiar) miniaturas de galáxias em nuvens de pó.

Inútil querer limitar mundos, levantar muros, cortar fluxos. Poesia é o nó.

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