sábado, 28 de agosto de 2021

Primeiras palavras


"Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira." Esse chute no peito que o aniversariante Tolstói meteu como abertura de Anna Karenina (ou Karênina, ou Kariênina, lá como queiram) é das primeiras frases de livro que mais amo, senão a que mais; tem o mesmo fator eita dos sonhos intranquilos e metamorfoseados de Kafka, das flores que – segundo Virginia Woolf – Mrs. Dalloway ia comprar ela mesma, do "É uma verdade universalmente reconhecida que um homem rico e solteiro precisa de uma esposa" com que adentramos o Orgulho e preconceito de Jane Austen, do "Tudo no mundo começou com um sim" que inaugura A hora da estrela de Clarice, do "Nonada" que Guimarães Rosa sapeca no princípio de suas veredas. Adoro isso, o povo que tem pegada e irrompe no romance com o pé na porta, empurrando para trás nossa cabeça arregalada; se eu um dia cometer um romance, espero escancará-lo também desse jeitinho bruto (embora seja, no geral, total adepta de delicadezas), com algum nível de assombro, alguma necessária reação de boca ou olhos do leitor. Que o cidadão garre na obra e recue de cara como a um golpe físico: quase certeza de que a leitura o sereiará, em poucas escalas, até o mais profundo.

Qual seria minha primeira frase, meu primeiro trecho? Oxe, faço nem ideia. Posso pensar numas possibilidades inteiramente à moda de quem pensa num braço sem corpo, numa parte sem todo, numa personalidade ou numa voz sem filho:

"Eu disse que, se inutilizasse luzes e cobrisse janelas, o exército de coisas estranhas não entraria."

"– Consegue ver? Então. É ali. Vá e não volte."

"Se o polonês Jedrek tinha uma certeza, era de que todos tinham acreditado em sua morte."

"Nem no dia dum casamento tão miserável Corazón chorou. Nascera desaparelhada para chorar."

"Naquele ano, nós vivemos em Paris para sempre."

"– Tazanna, diga a eles que eles podem. Diga a eles que eles podem!"

"Minha mãe já havia decidido que, quando eu crescesse, seria presidenta."

"Imara soube que finalmente atingira seu limite."

"Não seriam apenas alguns meses: era tudo aquilo pela frente, naquele lugar."

"E Abílio Farah jurou que nunca mais iria à casa dela; jurou também que ou não amaria mais no mundo, ou amaria a primeira com que esbarrasse."

"– Prepare-se, Mahina; tive informações de que você seria a próxima escolhida."

"Os dois eram fugitivos, só não sabiam que de maneiras tão diferentes."

"Conhecer Maria Isla foi a verdadeira inauguração da vida de Olívio Hernando."

(E inaugurar uma história – vou? Possa ser que um dia, por enquanto sem horizonte, sem corpo, sem sonho e sem quando.)

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