sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Sem palavras


Está uma brutíssima duma lua cheia ou quase cheia, e o céu infinitamente, transparentemente limpo; mesmo na meiuca da cidade se vê um desbunde de estrelas e um planeta Vênus (Júpiter? Saturno?) ainda mais desbundado, brilhando tão balofo de se querer recitar aquele velho star light, star bright, first star I see tonight. Não sei como o povo tem juízo com uma noite dessas – digo: não sei como tem o juízo de dormir, em vez de ficar se enluarando madrugada adentro e pensando nadas ou tolices debaixo da lua. Uma das tolices que cunhei, aliás, foi a necessidade evidente de haver um verbo ou substantivo ou adjetivo para significar esse empaspalhamento das noites plenilúnias, essas bobeiras não de insônia propriamente, mas de simples maciez mental sob influência da astra-mãe; seríamos então o quê? Plenilunáticos? plenilúdicos? pleniloucos? De qualquer modo o termo escorrega, derretido ao luar como os relógios de Dalí e impossibilitado de captar tudo que mora num cérebro da madrugada. Ficar em estado de chafurdamento lunar é líquido ou gasoso, mas não sei se colocável em solidez de ortografia.

Há milhões desses termos que não há (não há?), que talvez não possa haver. Um nome para chamar suficientemente os que não encontram nenhuma espécie de amor em vida; um nome para designar com decência os que são, inteira ou parcialmente, muito mais velhos que sua idade real ("os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse", como diria Bandeira de sua Teresa); um verbete que dissesse com propriedade da sensação de despedir-se dum arco-íris, tornando-se a olhá-lo outras vinte vezes para ter certeza de que não ficaram resquícios; uma entrada de enciclopédia que desse conta daquela música que gosta muito mais da gente que a gente dela, e nos aflige e nos persegue para aceitar um relacionamento que não queremos porque ela significa ou relembra alguma angústia; um advérbio de intensidade que medisse em poucas sílabas o tanto que temos de horror à eclosão de nossos próprios monstros desconhecidos, que dormem em sereno controle nas CNTP e podem, entretanto, apresentar sei lá que potencial de pólvora se acuados pelo desespero. Com que advérbio de modo combater o que não se conhece nem deve jamais vir à tona?

Não há (todos dizem) um termo que nomeie quem ficou "órfão" de filho, nem há também para as demais orfandades várias: de tio, de primo, de amiga, de avó, de irmão. Não há, provavelmente, glossário para cada uma de nossas fomes específicas – de bolo, de batata frita, de fígado, de amendoim. Não há palavra que alcance o ser totalmente de um lugar e ser, também, totalmente de outro. Não há sílabas disponíveis para abraçar a percepção duma alma-gemice intersecular, entre pessoas que naturalmente jamais se viram ou se verão, mas que nasceram para a convergência intelectual. Não há fonemas bastantes para representar as sobras sonoras que ficam depois duma leitura (ritmos, vocabulários, até qualquer coisa de paladaroso na língua). Não, não há idioma que englobe, que envolva, que encerre em si e consigo tudo que parecemos ser, ensaiamos ser e somos, com todas as cores de nosso desdobramento possível.

Muito do essencial, aos ouvidos e aos olhos, é indizível.

Nenhum comentário: