quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Meia-volta, volver


Fábio comentando que viu, ontem, um gurizito voltando da escola vestido de soldadinho. Gente, SÉRIO que ainda tem isso? Que ano é hoje? Tanto se falou recentemente em cringe (um papo, aliás, que já está cringe) e ninguém que eu saiba apontou como ícone essa crinjada federal: botar criancinhas com colete, espada e chapéu de dobradura no Dia do Soldado – um despropósito tamanho que não sei nem por onde começar. Se no Brasil da e pós-ditadura militar já era sumamente ridículo, em 2021 é uma aberração, uma afronta, um deboche, ainda mais em companhia daquela musiquinha aparentemente inocente, mas cruel ao extremo, que ameaça de prisão o soldado que "não marchar direito" e só se preocupa, em caso de fogo no quartel, com o acudir a bandeira em detrimento das pessoas igualmente carbonizáveis. Qual o cabimento de glorificar uma data militar em meio a um desgoverno de altíssima militarização, que só tem trazido e representado para o Brasil a cavalaria armada de Fome, Morte, Peste e Guerra? Que nível de sadismo – ou no mínimo de bruta falta de noção – mora em quem fantasia de soldado uma criança carioca, sempre alvo potencial da PM que mais mata (e que mais morre, sejamos justos em dizê-lo)?

Não precisam me alertar de que not all policemen; sei disso, já conheci e conheço gente fardada honradíssima, tenho ex-aluno soldado inclusive – e é pessoa consciente e maravilhosa. Porém não me atenho a casos particulares, atenho-me ao panorama, ao contexto; uma homenagem assim de escola tem dez vezes mais obrigação de se fazer antenada com sua época, dez milhões mais de motivos para combinar com os arredores, com a evolução de percepções, de pensamentos. Não é fato que diversos colégios, por exemplo, dão preferência hoje a realizar uma Festa da Família, um Dia de Quem Cuida de Mim, em substituição às clássicas festividades de Dia dos Pais e até das Mães? Núcleos familiares vêm mudando consideravelmente, e é fabuloso que o universo escolar tenha procurado tornar-se cada vez mais inclusivo, mostrando-se empático com os sentimentos dos alunos que não viam abraçada sua realidade social e doméstica. Se essa finura de observação se aplica no micro, pode e DEVE fortissimamente aplicar-se no macro: crianças não estão aí para serem constrangidas a homenagear quem ou não representa nada para elas (pense rápido em como explicar-lhes, com bastante concretude e proximidade de seu nível de compreensão, as razões de celebrar o soldado; pois é), ou simboliza alguém que já lhes rendeu mil experiências desagradáveis, quiçá traumáticas. Pergunte-se lá a meus alunos, em grande parte residentes de comunidades, se se sentiriam confortáveis de portar os tais adereços icônicos da soldadaria.

Quero crer que essa crinjada soldadesca da escola do menininho tenha sido caso isolado, que a mania militarizante em salas de aula esteja em franco desuso, e que na realidade a maioria das professoras e professores ande mais interessada em acentuar a grandeza de inúmeras outras carreiras – médicos, enfermeiros, cientistas, pesquisadores, historiadores, profissionais de limpeza, mecânicos, músicos, bailarinos, atores, escritores, cozinheiros, motoristas. Quero crer que um contingente esmagador de colégios esteja mais dedicado a exaltar a arte, o diálogo, a diplomacia, a empatia, e busque de todo modo desviar seus estudantes de tudo quanto seja bélico, tudo quanto envolva armas, austeridade e força bruta. Função de soldado fique ilustrada, no máximo, pela imagem daqueles no Afeganistão baixando a guarda para trocar fraldas e dar colo à bebê que aguardava sua família. Zelo, ternura, fofura – o mundo precisa disso, disso apenas, não mais que isso.

Quem não entender direito é cabeça de papel.

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