sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Dez quilos de mandioca e outros obrigados


Passou por mim um tweet fofíssimo, replicado no Face pelo perfil O Lado Bom das Coisas, em que uma pessoa contava enfofurada: "eu arrumei o currículo da minha prima esses dias e hoje ela me trouxe DEZ QUILOS de mandioca, que ela msm catou e descascou pra me agradecer 😭😭😭💗💗💗💗" – sim, reproduzo o post com emojis e tudo, alternadamente encantada como num jogo de tênis; amei o fato de a criatura ter ajudado no currículo da prima, amei a dedicação carinhosa da prima em colher e limpar com suas mãos os vegetais que serviram de pagamento, amei talvez ainda mais o reconhecimento comovido do destinatário das mandiocas. Não havia, no tweet, sombra de abordagem da remuneração como algo risível, pitoresco; muito ao contrário, a postura de quem narrava o pequeno causo era grata, amorosa e reverente, postura de abraço e orgulho. Alegria de gentileza.

Quanta doçura mora não apenas nos que são de natureza agradecida, mas muitomente, também, nos que têm olhos de amar essa natureza em quaisquer de suas manifestações! Que afinal nem todos dizem "obrigado" assim com sílabas, ou mandam cartãozito e flores; tantos "obrigados" existem como existem pessoas a dizê-los – às vezes com palavras, até. Há agradecimentos derramados em sopas de ervilha, refrescos de groselha, biscoitos amanteigados; há agradecimentos tornados em "olha, aquela série vai entrar na Netflix, sei que você estava esperando, fique atento"; há agradecimentos materializados nuns olhos imateriais de tão estupefatos com a fabulosidade do outro; há agradecimentos clandestinamente hospedados em saquitos de chá, capas de almofada, caixinhas de música, lenços bordados, canetas, canecas. Gentes penduram agradecimentos nos varais ao realizar uma força-tarefa para tirar aquela mancha renitente, e dormem agradecimentos à cabeceira, zelando febres, e desenham agradecimentos infantis com giz de cera e purpurina, e desenham agradecimentos adultos arranjando finalmente o molde daquela blusa da revista. Veem-se mercis em toda espécie de mercês – um corte de cabelo, uma bolsinha de água quente para cólica (ou para lençóis aquecidinhos no inverno), um achei-seu-sorvete-favorito, um leva-esses-dez-reais-prum-salgado, um aviso de que abriram as inscrições, um link perfeito do YouTube, uma recuperada básica das roupas na lavanderia, um vale-night "porque você trabalha demais todo dia". Aproveita, chefia.

Há que ter visão de adivinhar "obrigados" e sabedoria de aceitá-los; são questão de honra para quem oferece, uma recusa não soa como consideração aos eventuais poucos recursos do oferecedor, muito ao avessomente: é doce sentir que se atingiu alguma espécie de quitação, e humilhante, por outro lado, ter seu presente inaceito. Mas vai nisso uma arte – pequenices hão de ser sempre recebidas com entusiasmo, excessos não, que são uma exploração tácita. Onde a fronteira? Se eu soubesse, migues, não havia de estar por aqui blogando, estava por aí enricando com autoajuda; porém a medida fundamental eu creio que seja: se o outro tem menos e aquilo lhe faz falta, é excesso; se o outro tem muito muito muito mais e aquilo lhe sobra, e se ostenta, e supera igualmente o que fizemos, é excesso também. O simbólico amoroso da parte dos que têm menos e a justa conta da parte dos demais: eis, suponho, a gratidão cabível, o quanto pode aproximar-se dos parâmetros certos.

Ao que é oferecido estritamente por e com amor, de qualquer forma: braços abertos.

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