domingo, 22 de agosto de 2021

Onde estarão as cartas


Já madrugada e eu constatei, no Face, que o querido André Gabeh tinha vindo com: "Onde estarão as cartas enviadas pra Xuxa que não foram sorteadas?". Pronto. Dúvida. Enigma. VALEUZÃO, hein, André? obrigaaaada mesmo pelo post arremessador de dilemas nos corações insones.

Agora já nada temos a fazer senão aventar hipóteses. De tudo, só não quero considerar que as cartas tenham sido arquivadas, ou pior: incineradas; concordemos desde já, portanto, em nem roçar uma solução tão deprimente e antipoética, e ignoremos diligentemente o detalhe de ser a teoria mais provável. Isto posto, por que não imaginar, por exemplo, que as mensagens descartadas eram adotadinhas por serial answerers, funcionários ou não do programa, que passavam meses fazendo revezamento de papéis de carta perfumados – direitinho como no fofíssimo Cartas para Julieta, em que senhoras voluntárias respondiam aos bilhetes deixados no muro dos Capuleto? Ou por que não supor que ao menos os envelopes que continham desejos d'alma acharam (voadores quando ninguém estava olhando) um rumo papai-noélico? Também não me desgosta acreditar que pessoas afetivamente ligadas aos xous montaram, com toda a correspondência, painéis de arte fabulosos; que, se precisaram desfazer-se da papelada, fotografaram antes todo o lote e hoje o digitalizaram; que foram plastificando todos os escritos/desenhos e agora os mostram carinhosamente a filhos, amigos, netos; que confeccionaram centenas de álbuns com aquele esparrame epistolar – e ainda os folheiam. Quero crer até, para cúmulo de poesia, que alguns desses operários da memória decoraram (à Fahrenheit 451) o máximo de cartinhas cabíveis, e sem folheá-las ainda as recitam, por nenhum motivo senão o de a verbalização ser veneno anti-inexistência.

Certas mensagens mais tocantes podem ter ido morar em acervos de museu; certas-umas podem ter sido musicadas, tornadas poema, romance, conto, crônica; outras, quem sabe, foram recicladas e viraram segundas ou terceiras cartas que talvez tenham unido casais atualmente bodas-de-práticos. Alguns recados terão porventura escorregado para debaixo de alguma estrutura e se perdido, e se encontrado após muitas décadas, e sido levados pessoalmente pelo funcionário encontrador a seus remetentes – entre os quais houve uma, sem dúvida, que se emocionou muito com a gentileza e está casada com o devolvedor até hoje. E se decidiram enterrar aquela transbordância papelesca nalguma cápsula do tempo? ou se permaneceu tudo em posse dum(a) cientista social que acompanhou anonimamente o crescimento das ex-crianças, ao estilo Boyhood? Tudo pode ser com essa correspondência de Schrödinger, que nesta horinha mesma está tão esfacelada em micropartículas pela terra e o oceano quanto armazenada e revivida de todas as maneiras, em realidades hipotéticas mais do que fartas.

No vácuo dos fatos frios, a ficção dá as cartas.

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