domingo, 8 de agosto de 2021

A melhor normalidade disponível


Sim, eu sei que A vida da gente já reacabou há alguns dias e tals, mas vou encarar como obra literária e, portanto, interminável para debates. Não cheguei a comentar uma das coisas que mais positivamente me impressionaram na novela: assim como na vida da gente, esta aqui fora da telinha e sem itálico, nem tudo se soluciona ali de maneira açucarada, implausível; se dentro de enredos reais existem evoluções sem dúvida, as revoluções e duplos twists carpados existem de raramente a nunca – e foi e é comovente ver, na trama de Lícia Manzo, o respeito absoluto à dificuldade, à limitação, ao processo e mesmo à impossibilidade. A impossibilidade é também um fato que nos contorna, uma realidade que nos permeia, ao menos durante nosso tempo de vida física (digo nada a respeito da cronologia coletiva, evidentemente mais capacitada para tornar as coisas possíveis); que ela tenha sua visibilidade assegurada chega a ser uma providência terapêutica: não, não poderemos resolver tudo e independentemente disso ficaremos bem. Não teremos a melhor relação do mundo com aquela pessoa e mesmo assim viveremos felizes. Não seguiremos com os primeiros sonhos românticos e ainda construiremos algo puro, sólido, maravilhoso. É extremamente provável que o impossível se atravesse sobre nós e nos atravesse; é bastante recomendável que, com igual potência, saibamos lavrar as estradas que cabem aos seres impotentes.

A duas-vezes-ex-novela das seis abundou em mostrar pendências propositais, vácuos que simultaneamente não deixavam nada pendurado; houve, do início ao fim, sabedoria nas ausências (falo da obra original, fique bem entendido; o tamanho da mutilação a que submeteram vários capítulos da reprise – especialmente o último –, largando diversas cenas sem pé nem cabeça, me dá engulhos que não quero sequer mencionar). Foi, em ótimo sentido, uma novela de nãos: a fria, pragmática, insuportável Vitória nem de leve se adoçou ou baixou a crista, não foi acometida de nenhuma epifania irreal e, portanto, nunca se abriu para Alice, a filha de sua adolescência, ou se reaproximou da herdeira e ex-treinanda Sofia; o imaturo Marcos, sonhador, megalômano, não foi transformado pelo amor de Dora num ser minimamente responsável com boletos e detalhezinhos afins da vida prática; Jonas, advogado workaholic, não sentiu os efeitos de mudar de esposa a não ser para permanecer exatamente o mesmo – ausente, dotado de profunda limitação emocional, 100% desligado dos filhos; Francisco não começou a chamar Nanda de "mãe" ou qualquer breguice parecida, e ambos, embora reconciliados, continuaram a ter um relacionamento de afeto sem agarramentos e sem idealizações; Cris não virou uma mamãezinha atenta e amorosa e não demonstrou o menor crescimento pela dor, após ser escorraçada por Jonas e cair em pobreza; PRINCIPALMENTE, a alma adoecida, obcecada, narcisista de Eva provou não estar em vias de nenhuma espécie de redenção, atingindo com imenso esforço apenas um arremedo deplorável de afetividade sadia. Em suma, não houve milagre de São Fim de Novela, não houve insights abracadábricos sacados da cartola; houve a vida fluindo, fluindo na melhor normalidade disponível.

Buscar a melhor normalidade disponível foi justamente o que coube aos personagens circundantes dos imutáveis: Sofia construindo uma linda sororidade com Alice (à revelia de Vitória), crescendo no tênis, correndo atrás de sua independência financeira e de um cantinho para dividir com o pai – de cujo amor era rica, mas com cujo pragmatismo sabia não poder contar; Dora refazendo a vida amorosa com um homem capaz de parceria em todos os níveis; os filhos de Jonas, mesmo o pequeno e pseudofilho Tiago, existindo felizes longe da esfera de indiferença e desamor paternos (Tiago, aliás, tendo a doçura de se abrir para uma nova estrutura familiar, finalmente calorosa); Ana, Manu e Iná combinando de enxergarem Eva como um caso clínico e traçando estratégias para uma convivência civilizada que as deixasse protegidas, ao mesmo tempo, de todas as armadilhas neuróticas da personagem-problema. Foi último capítulo de na verdade abrir outros, último capítulo de rio correndo – travessia, diria Guimarães Rosa; não um final, de modo algum um final, e sim um meio. Uns meios. Um entretanto, um durante, um enquanto-isso, um bora-lá ver o que podemos, o que conseguimos diante do panorama que se estende.

Das mais verossímeis histórias, só reticências se deduzem: não existe the end.

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