segunda-feira, 1 de março de 2021

Arquipélagos

Episodinho fofo narrado no Frases de Crianças:

"Estávamos falando a respeito de qual faculdade meu irmão do meio iria cursar, quando o mais novo [Felipe, 8 anos] comentou:

– Quando crescer, eu quero ser um engenheiro ou um 'arquipélago'!"

(E depois dizem que homem nenhum é uma ilha.)

Sei que não de propósito, mas o fato é que o pequeno Felipe acertou direitinho na metáfora, e com certeza não precisará esperar crescer para ser arquipélago: todos o somos quase que de nascença. Por coincidência (?) é algo literalmente retratado na animação Divertida mente, aliás; o interior da protagonista Riley se subdivide em Ilhas da Personalidade, que são cinco aos onze anos – Família, Hóquei, Amizade, Honestidade e Bobeira – e vão se multiplicando e complexificando à medida que a menina se aproxima da adolescência, quando brotam, por exemplo, as ilhas do Romance Vampiro Trágico, da Boy Band e da Moda. Uma tradução visual precisa e divertidíssima de nossas muitas ramificações, de nossa Oceania psicológica cada vez mais emaranhada e confusa, onde não acaba nunca de haver terra à vista.

Bem como num conjunto geográfico do tipo, essa coisa arquipélaga que somos abrange frequentemente, sob o mesmo nome geral, as tendências mais disparatadas no entre-si. Sou prova: um meu pedaço de chão é a Cidade Vulcânica dos Programas de Psicopata, outro deles é o World of Fofura; tenho de um lado, cristalinda, uma Noronha feita do Romantismo Literário do Século XIX, e do outro uma Groenlândia praticíssima. Babo pelas produções e parques da Disney, em que eu brincaria seguidamente por dois milênios, sem que por isso deixe de abrigar também umas cinquenta Cubas de comunismo (fiz outro dia um teste de orientação política: ao que parece, se eu fosse um pontinho a mais de esquerda eu caía do gráfico. Ganhei do Chomsky, tá, querieeeda?). Guardo um Caribe trepidante, sociável, aventureiro e uma Tierra del Fuego longínqua e melancólica. Trago, pulsantes, uma megabrasileira Marajó e uma cosmopolitérrima Manhattan. Sou a vida selvagem de Galápagos e o futurismo dos Japões. Quantos por cento de cada? Cem por cento de tudo.

Formamos um pacotão de ilhas maiores, menores, havaianas e nórdicas, ignoradas e típicas, e é até natural que uma porção do arquipélago seja mais crescida que outra – contanto que, em nós, nenhuma seja desabitada; ou mais exatamente: nenhuma inabitável. Uma vez erigida a mininaçãozinha dentro de nosso território psicológico, convém que estejamos inteiros tão nesta como naquela, e que nem a diferença de assiduidade represente ausência de franqueza; pode-se mais constantemente ser esposa do que filha, mais recorrentemente leitor do que cinéfilo, mais entusiasticamente militante do que artista, porém é obrigatória a completude no ato de habitar cada ilha de si, sob pena de músculos emocionais atrofiarem de negligência. Sob pena de se virar, nalguma parte dentro, alma náufraga que nem reconheça mais as coordenadas onde desmaia.

Entre mergulhos dados em tantas lândias de nós, haja ao menos a lucidez dum SOS nos impedindo de nadar, nadar e morrer na praia.

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