segunda-feira, 14 de junho de 2021

O dia da canja


Passei mal, até a dor e a náusea, com alguma coisa consumida no dia anterior, ou nos dias anteriores, o que me pôs em modo de canja, chá, banana cozida. Desanimadamente? é curioso, mas não: desde que recuperada do mais desagradável, que são os movimentos para descomer o elemento intruso, não sou capaz de me ressentir do estado excepcional; eu estranhamente gosto dos estados excepcionais, ou gosto de uma forma torta e confusa de me ver, vez por outra, sequestrada de mim mesma. Dificilmente me dou folga de alguma necessidade, dever, apetite (até a tendência de adiar adiar adiar me serve como um sequestro funcional: em algum momento o tempo urge a ponto de eu não mais me pertencer, e pertencer provisoriamente ao que deve ser feito), o que significa que, tardando ou não, vou acabar me lascando inteira por e para realizar a tarefa – ainda que a tarefa seja devorar o que há na mesa para ser devorado. Visto que provavelmente não chegarei a me interromper, não me oponho a que forças maiores do organismo volta e meia me interrompam, em motim; que o estômago, os olhos, a cabeça, o fígado se revoltem e mandem um stop! de amorosa intervenção e me carreguem à minha revelia da tormenta para a boia.

Sou espontaneamente avessa a comidas excessivas e gordurentas, mas ainda assim as fronteiras do corpo se fazem perceber irritadas, de quando em quando: menos, menos, olha, tem lactose de mais, EI, ESTOU FALANDO COM VOCÊ, NÃO ABUSE! E aí vou lá e abuso, e que nem criança aprecio secretamente que os limites sejam impostos, que o orgânico me salve do consciente, que o real me salve do irresponsável, que o enjoo me salve de mim. Porque, no estado de enjoo, já não há qualquer sacrifício na renúncia; toda a conjuntura do corpo torna a renúncia sincera, voluntária, e o que apetecia deixa de apetecer. Não é que puxa, caramba, não posso comer um biscoitito amanteigado, uma pizza, um estrogonofe: o negócio é que NÃO QUERO biscoito amanteigado nem pizza nem estrogonofe, a náusea e a memória da náusea me dominam acima do apetite e fazem legitimamente atraentes a canja e a gelatina. Claro, tamanha sensatez gastronômica não dura – assim que se pilha consertado, o time da digestão flexibiliza feliz as medidas de isolamento e lentamente escorrega para a temeridade; mas, enquanto dura, o amor pela vida light é infinitamente honesto e as comidas de perdição são vistas com infinita repugnância.

Curto ter de me adaptar a algumas – eu disse ALGUMAS – inconveniências, confesso; buscar alternativas para probleminhas descartáveis, ser empurrada para a criatividade queira ou não queira, fazer o que meu proporcional apego à acomodação não faria. Evidentemente prefiro que tudo sempre dê certíssimo, quem não?, porém já me fui apresentada o bastante para saber que uma parte inconsciente, espoleta, aventureira, inquieta não se abala tanto quanto seria razoável com os eventuais desvios, e que, pelo contrário, tem uma levíssima atração fatal pelas situações novas, enviesadas (não deve ser à toa que amo tanto os "vilões" oblíquos, portadores de alguns porões e sótãos de onde acaba saindo coisa boa). Como a minha praticidade incontrolável me impede de procurar problema, casos em que os problemas me acham acabam sendo os únicos encontros fortuitos com o resolvômetro que me habita, com a manifestação real do e se ao qual nenhuma criatura foge. Uma parte(zinhazinha que seja) de nós quer ser ocasionalmente desafiada, não a sair de sua zona de conforto como pregam os sádicos e maníacos que parasitam a boa-fé dessa nossa parte(zinhazinha), mas sim a expandir sem maiores traumas a zona de conforto mesma; somos bem um grande músculo mais ou menos preguiçoso que estoura se pressionado em excesso e que, por outro lado, caso seja abandonado à própria e eterna pasmaceira – atrofia.

O equilíbrio está na linha de sabermos reagir às dores sem abraçar aquilo ou aquele que as causa. Mais fácil de dizer que de providenciar: como não raro temos uma queda para ou uma dívida com aquiloquele que nos provoca e espicaça, construir um crescimento sem endossar o sofrimento definitivamente não é sopa.

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