terça-feira, 1 de junho de 2021

Os dias que nos fazem felizes


O poeta inglês John Masefield, nascido no primeirão de junho de 1878, escreveu lindamente que "os dias que nos fazem felizes fazem-nos sábios". Pois fico felicíssima de concordar com um nativo do abre-alas do "meu" mês, esta metadezinha fofa do ano, inclinada a festas coloridas e guloseimas abundantes. Nunca duvidei, nem por um minutriz: é principalmente a alegria íntima, a alegria dos amores tidos e partilhados, dos sonhos desimpossibilizados, dos esforços acolhidos, das doçuras colhidas, das necessidades acatadas, dos olhos vistos e da pulsação pressentida cariciosamente de perto, das estradas franqueadas e das chances chovidas em abundância – é principalmente essa alegria farta que nutre os neurônios, dá comida na boca da criatividade, bota robusto o discernimento. Não, pessoas não nasceram em hipótese alguma para a angústia, para a tortura; e não são dignas da própria homo-sapice as almas canalhas que romantizam o sofrimento ALHEIO, alegando (obviamente em autobenefício) que "a provação enobrece", "o padecimento forma caráter" ou qualquer afirmação nojenta da mesma laia. Da mesma laia e do mesmo nível de cinismo, por exemplo, que a inscrição espúria dos portões de Auschwitz, Arbeit macht frei, "o trabalho liberta" – situação-metonímia de exploradores malditos tripudiando sobre esmagados a partir dum uso "moralizante" da dor (sabemos bem qual era o trabalho em questão). "Eita, mas credo: trazer Auschwitz à baila??" Sim, e sem nenhum exagero, já que é bem igualzinha a lógica dos sempre empenhados em fazer a ode ao sofrimento dos outros; quem acha PREFERÍVEL a descida de seu semelhante ao inferno como uma espécie de método educativo costuma estar pessoalmente interessado em assumir o papel do diabo.

É evidente que pessoas aprendem na dor, mas porque são pessoas, não porque sentem dor; aprendem a despeito dela e não por sua causa. Se é consenso irrefutável que um ser humano necessita de ar limpo, água limpa, boa alimentação, afeto, cultura, lazer, segurança e tudo que sabemos e ninguém contesta, como é que AO MESMO TEMPO esse exato ser humano fica muito mais evoluído ao lhe tirarmos boa parte do essencial? Ora, mes amis, não precisa ser Poirot para entender que os vendedores do sofrimento são seus exatos produtores, e seriam seus primeiros consumidores – quereriam para si e seus filhos lotes e lotes do produto supostamente maravilhoso – caso não soubessem de antemão que vendem coisa envenenada, ideia pútrida, nem um pouco estimulante e inclusive atrapalhadora de qualquer evolução. A lógica desses fãs da provação alheia, simultaneamente sádicos e hedonistas: servir água de esgoto a uma quantidade gigantesca de clientes e usar os dois ou três que sobreviveram como garotos-propaganda dos benefícios da água de esgoto. Dizem que se esses dois ou três puderam, todos poderiam; dizem-nos altamente portadores de mérito; dizem os demais fracos, despreparados e sem têmpera, tsc, tsc. Ao fim e ao cabo, entrevistam os sobreviventes com os olhos cheios d'água (metaforicamente, também de esgoto) e fazem lives comovidíssimas à beira da piscina, proclamando que o mundo é dos fortes.

O mundo é – ou foi feito para ser – dos felizes. Na infância rica de aconchego e estímulo se plantam os mais crescedouros grãozinhos de empatia, curiosidade, pensamento científico, alumbramento diante das diversidades, consequente respeito às variadíssimas manifestações do ser. Na alimentação transbordante de sabor, natureza, afago se escoram as multiplicidades possíveis do cérebro, que tão mais flexível será quanto mais (e mais cedomente) for provido. No repouso da residência sólida, confortável, razoavelmente a salvo de intempéries e violências, povoada de memórias e braços queridos, de corações macios, duma estrutura familiar abarcante e compreensiva – moram as inteligências a serem desenvolvidas nas relações extrafamiliares, moram as seguranças do futuro profissional, moram as confianças no sonho que serão holofotes dos anos e décadas seguintes. Note-se: não é de mimo, sequer um momento, que falo; é de um terreno firme e fértil no emocional, no sentimental, no residencial, no nutricional, no cultural, no intelectual; é de uma felicidade que deveria ser mínima, óbvia e não de luxo, acessível a todas as mãos como fruta de rua. Que a felicidade nos pareça – ao menos a nós, brasileiros – um artigo de ostentação e não um direito basiquérrimo dá bem a medida da Síndrome de Estocolmo desoladora em que nos encontramos, conformada em baixar expectativas e sobreviver à gaiola, e como que envergonhada de qualquerzinha alegria que soa quase um insulto.

Felicidade não é Chanel, é cesta básica: em nós uma biografia inteira floresce dessa necessidade tão primeira.

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