segunda-feira, 7 de junho de 2021

Quietos fazemos as grandes viagens


Sou bastante eu nos versos do poeta, cardeal, teólogo, professor José Tolentino de Mendonça: "Quietos fazemos as grandes viagens/ só a alma convive com as paragens/ estranhas". Creio-o bem; sei que há pessoas muito derramadas, muito exteriores, completamente se-rodeantes de amigos e amados e ruídos e festas; sei que não são por isso menos plenas de insondabilidade humana, nem mais superficiais – apenas mantêm sua subjetividade numa espécie de prontidão de afetos, de fatos, de contatos que eu por exemplo não tenho, mas que é uma simples e outra forma de desdobrar as pétalas; e, apesar de saber quão perfeitamente natural é a extroversão alheia, quão necessária a agitação é para muitos, não posso duvidar das palavras de Tolentino: quietos fazemos as grandes viagens. Cerquemo-nos ou não de baladas, barulhos, camarotes, o silêncio atônito e primordial que nos compõe continua nos compondo, seja sob disfarce ou com sua carinha explícita.

Não tão quietos, convenho, adentramos este mundo biruta – não tão quietos por fora; manifestamos aos berros, aos escândalos nossa perplexidade inocente, é verdade, porém não chegamos nem a alguns metros de manifestá-la toda. Não chegamos nem dois passinhos mais perto do centro de nossa confusão primária, em torno da qual gravitamos sem grandes respostas nem quase instrumentos para colhê-las. Evidentemente o amor e o acolhimento externos diminuem com força nosso diâmetro de desconforto; ainda assim, nós-sozinhos somos os que lidamos com o medo da mudança, com as pequenas e grandes vergonhas às vezes intransmissíveis a qualquer de nossos guardiões, com a enormidão de pesadelos (e alegrias) inverbalizáveis de tanto que nos parecem ter adentrado as células. Ninguém senão nós se aflige com os sonhos que só nós vivenciamos, ninguém guarda daquele ambiente a impressão ruim que só nós guardamos, ninguém sofre precisamente com o que nós sofremos; por mais que carnavalizemos essa maçaroca de sentires, por mais que a arrastemos para o bloco ou a exponhamos num outdoor a fim de não ficarmos isolados com ela e precisarmos fazer sala, tem jeito não: o maior desenrolo entre nós e o nosso combo de impressões íntimas se dará em noites de insônia e auto-DR, em momentos de recolhimento e escrita, escrita e análise, análise e meditação, meditação e caminhada à beira-mar, caminhada à beira-mar e jardinagem, jardinagem e cozinha, cozinha e música – lá o que seja que nos aquiete minimamente. Quietos, de algum modo e sob alguma força quietos, é que encaramos o percurso sem a desnitidez dos delírios e das ressacas; na quietude sóbria é que conseguimos nos suster, dirigir, andar. Remar. Rumar.

Almas que nem por nada logram aquietar-se e conviver com as paragens estranhas avançam também, ou antes são avançadas pela viagem que as empurra; porém seguem desrumadas, aos trancos, normalmente aos círculos. Um coração pode ser o doidivanas que for, mas convém que volta e meia se sente no meio-fio em silêncio e pare para ler o mapa: que, mesmo numa caravana de alegre companhia, ou mesmo entregue por preguiça em mãos alheias que o administrem, se pergunte se é realmente para lá que ele escoa, se é de fato sua a escolha de uma vida tão passiva ou tão saltimbanca. Só suficientemente quieto (quieto para dentro) um coração pressente a viagem que é mesmo toda sua, toda de roteiro personalizado, toda com a bagagem particular e necessária. Nós somente – ao nos rendermos à tranquila percepção de nossas miudezas – podemos arrumar a própria mala e o próprio trajeto. Cada um de nós nasceu grávido da própria bússola.

Cada um de nós precisa parar para se dar à luz na história que lhe cabe traçar.

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