sexta-feira, 4 de junho de 2021

Lógica analógica


"E então mais uma vez me fiz antigo", diz o primeiro verso dum poema de Ivan Junqueira. Me vi nele muito, muito ao precisar pegar carona no cartão de crédito da irmã para enviar presente à amiga – presente imediato, de espera incabível, de urgência incompatível com transferências e boletos. Se bem que uma quantidade absurda de sites deliverantes mostra a mesma inelasticidade para pedidos de qualquer prazo, e não faz questão de esconder uma mui estranha despreferência por pagamentos sem preâmbulos, à vista, diretos, débito em tempo real ou dinheiro na mão; os ilustres comerciantes parecem curtir mesmo o mistério do crédito, o frisson romântico de empurrar para depois (e dizem que as sentimentalidades estão mortas, tsc). Já eu, embora tradicionalmente amiga de empurrar perrengues para depois, curto nadíssima essa história de estar financeiramente pendente, e ou bem tenho e pago logo, ou bem não compro; até o imposto do Leão vai numa facada única. "Uai, mas então faz Pix, esses troços." Convenho, seria uma possibilidade adequada SE eu porventura dispusesse de um smartphone – porém, conforme já declarei ad nauseam, falta-me um desses bichinhos. Continuará faltando porque pretendo resistir enquanto puder, antiquíssima; e, caso as circunstâncias um dia me obriguem (sob argumentos de guilhotina) a comprar a traquitana, acabarei só usando para fins pagamentícios, olhe lá; para mim é no máximo xarope, definitivamente não é drink. É instrumento de aceleração; né brinquedo não.

Também já disse ad nauseam que NÃO sou a louca da casa mal-assombrada que acredita habitar o século XIX e é contra tecnologia. Jamais seria contra tecnologia; se defendo a ciência como qualquer pessoa minimamente razoável e sã, era um tremendo despropósito eu me opor aos frutos de anos e anos de estudaiada. Sou contra, sim, o uso agressivamente mercantil de inovações nos produtos, a ponto de em seis meses vermos um ciclo de nascimento, glória e obsolescência de modelos smartphônicos, e um ciclo de correspondente desespero de consumo e reconsumo. Sou contra o aspecto compulsório que determinados recursos subitamente assumiram, o que põe o mundo em rota de exclusão progressiva; duvido nada que, muito em breve, os desprovidos de smartphone consigam nem tomar um cafezinho na padaria, por terem apenas uns dinheiros bastante analógicos no bolso.

Sou pela amplidão e multiplicação das estradas, o que por sinal considero moderníssimo: faz Pix quem quer, paga com cartão de crédito virtual e descartável se lhe apraz, cheque, escambo, diamante, pulseirinha que nem as da Disney, o bom e velho cash, débito, boleto, VR, carnê, transferência bancária por leitura da retina. O que não tem sentido é endereçar caminhos a um só sentido, após tantos séculos de melhorias e alargamentos do percurso; se, afinal, estabelecimentos dos outroras aceitavam exclusivamente notinha sobre notinha, e muitos chegam agora (ao menos virtualmente, que é como são acessados e acessíveis durante a pandemia) aceitando o pagamento por crédito também com exclusividade, que raios de liberdade têm nossos tempos, que enorme e extraordinária vantagem oferecem nossas inovações em relação às da juventude de vovô e vovó, do biso e da bisa? Estamos aqui muito bonitinhos em 2021 não é para nos aborrecermos tecnologicamente, nem nos sentirmos paleolíticos, isolados (já não bastam os necessários distanciamentos da covid?): é, em tese, para nos refestelarmos com as alternativas, sermos abençoados com a chuva fresquinha de escolhas. Aventura em que não nos sentimos bem-vindos convida à desparticipação, ao desembarque.

No mais agudo surto de modernice, estreitamentos inexplicáveis de passagem parecem somente ecoar o método de priscas eras: welcome to the Jurassic Park.

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