sábado, 12 de junho de 2021

Amor e medo


Como eu (rosianamente) quase que de nada sei, mas desconfio de muita coisa, desconfio que os namorados, se enamorados realmente, têm sempre uma qualqueridade de medo.

Ei, não é do medo narcisista e odiosamente ciumento que falo, vade retro: suma-se esse um nas profundezas da história, no pântano do mundo. Falo do medo quase bom que dói e não se sente, da doçura que arrepia as penas feito passarinho assustado – porque um troço com a envergadura do amor não tem como não ser um susto –, do pequeno e caricioso pavor dos eventos importantes, aquele como no soneto de Neruda, "amo-te como se amam certas coisas obscuras,/ secretamente, entre a sombra e a alma". Sabem? é desse delicioso pânico que falo, o de estar vivendo em algo e para algo obscuro, sempre secreto, sempre intocável, porque simplesmente não se consegue compreender à luz do dia como fomos parar nele, como ele veio parar em nós; não se consegue lidar de uma vez com uma efeméride tamanha e tão insustentável, não se sabe em qual prateleira nova ajeitá-la, não se tem certeza se é objeto a se exibir ou a se acomodar em veludo, e ficamos nós perplexos segurando-o entre a sombra e a alma, suspirando de boa febre. That medo.

Parece, no amor namorado composto de uns derramamentos muito vivos de felicidade, que sempre se é culpado não sei de quê, em especial quando a inocência é pleníssima; efeito provável da avalanche de que continua falando Neruda: "amo-te assim porque não sei amar de outra maneira,// a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és,/ tão perto que a tua mão no meu peito é minha,/ tão perto que os teus olhos se fecham com meu sono". Como é que se emerge dessa confusão adorável e aterrorizante sem algum desespero correndo nas veias? Como é que – não direi em sã consciência, tratando-se duma tal evisceração emocional, mas – num estado de mínima coerência interna se pode encarar esse tanto de abismo, esse tanto de voragem sem um calafrio passeando no sangue e a impressão de que o coração não devia se meter mesmo onde foi chamado? Sim, o atar do nó(s) é estarrecedor e deve sê-lo, direitinho como o radicalismo dum esporte: ou se pratica com a cota sensata de inquietação, aquela que garante a prudência de não aniquilar nem ser aniquilado, ou se pratica temerariamente. E mal.

É preciso algum apavoramento decente perante a imensidão, crianças. O apavoramento (saudável, não fóbico) que se tem diante do mar, no qual se mergulha com respeito ou danou-se. O apavoramento de voar de ultraleve – curtindo como o quê, mas com o miocárdio alojado na garganta. É preciso ir caindo em namoro entre todos os sparks que iluminam os acontecimentos célebres, ir descendo ao amor com a mesma solenidade de descer ao oceano, ir atravessando o trajeto de chegar ao outro maravilhadamente como numa trilha, minuciosamente como numa escalada, mensuradamente como numa gruta. É fundamental a delícia entontecedora que bambeia as pernas e nos faz redobrar de delicadeza (nada como um bom enleiozinho para domar um orgulho afoito): paixões que tateiam, que se abeiram do amado com a alma de quem vai dar seu primeiro mortal no trapézio, muito improvavelmente ferem e mais provavelmente (a)colhem; têm a mais fiel noção da beleza na qual estão prestes a imergir e, por isso, se permitem viver tudo com a longa ternura duma véspera.

Ninguém está verdadeiramente apto para atirar-se se não temer a queda; tanto mais pesa o receio, tanto maior o esforço de leveza que se emprega em pertencer ao ar.

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