domingo, 6 de junho de 2021

O óbvio


Não gosto do que diz o que eu esperava que dissesse. Não gosto dos livros óbvios, dos textos óbvios, dos poemas óbvios, das mensagens óbvias, das novelas óbvias. Odeio, odeio o óbvio – não o simples, DE MODO ALGUM o simples: o óóóbvio. Os provérbios sem contestação, os ditos populares sem refeitura e malandragem, as mensagens escorridas e melentas dos cartões de papelaria, as conversas que estacionam fáticas sem ir nem voltar, que giram inférteis em torno de frases feitas há mil e quarenta anos: odeio. Odeio "divisor de águas", "luz no fim do túnel", "leque de opções", "história de superação", "sua verdade", "escolhido a dedo", "agregar valor", "correr atrás do prejuízo", "pensar positivo", "ser você mesmo", "agradar a gregos e troianos", "tirar o cavalinho da chuva", "voltar à estaca zero", "não lembro nem o que eu comi ontem", "gosto não se discute", "ninguém é melhor que ninguém". Odeio letras de pagode com amores e dores e como-fores e por-favores. Odeio lyrics neossertanejas que andam sempre na balada bebendo, caindo, levantando e pegando. Odeio entusiasmos-padrão e frases gêmeas de youtubers. Odeio, odeio até o vômito as canalhíssimas historinhas da mitologia coach.

Detesto com a força mais aguerrida, mais intransigente, todas as cenas de personagens falando sozinhos, falando – o que é consideravelmente pior – CONSIGO MESMOS ("calma, autoFulaninha, respira, respira"), falando para si o que está se passando na tela como se o público tivesse 8 pontos de QI. Detesto estrebuchantemente diálogo de novela que a gente já previu INTEIRO ao primeiro oi, inclusive com a inserção da odienta musiquinha incidental de comédia. Detesto roteiros preguiçosos, ramerramentos em torno de ninharia, repetidores de chavões e bordões, prolongadores de situações clara e ridiculamente inúteis, com caretas de mais, gestos de mais, palavras de mais. Ah! a irritação suprema do tempo escoado com capítulos inchados de nada, que nada acrescentam! que não rendem uma sobrancelha erguida em reação, um hum de surpresa, uma lembrança de comicidade ou ternura, um mote para comentários verbais e não meramente narizes/olhos revirados – nada, nada, nequitas. Claríssima afronta a nosso sacrossanto direito de ir (mais pobres) e vir (mais ricos) após um bom investimento de minutos; safadeza de obras com alma caça-níquel, que devoram tempo e devolvem secura.

Sim, explodo de ressentimento contra qualquer passo desperdiçado em território minado de obviedades, mesmo uma porcariazinha de comercial que anuncie filmes vespertinos e dominicais entre um "vai aprontar muitas confusões", um "viver grandes aventuras", um "parará do outro mundo", um "pereré quase perfeito" e um "pororó bom pra cachorro". Sou daquele povo que VÊ comerciais – boa parte das vezes sem arrependimentos, já que há sempre peças excelentes no ar (algumas são miniperolinhas de dramaturgia com textos mais instigantes que a programação oficial); mas a muita tolice histriônica que também existe, tipo propagandas de mercado e esses insofríveis anúncios sessão-da-tárdicos, me enlouquece molinho em poucos segundos. Não é questão de esperar um Macbeth a cada intervalo, gente, é só não tascar todas as fichas em frases paspalhas e sorrisos patetas – custa? Diz o nome do produto, apresenta os benefícios com dignidade, mete um jingle grudento, escala um mascote fofildo que não fale como se o consumidor tivesse 8 pontos de QI; desnecessário humilhar os atores e deixar o espectador entre a raiva furibunda e o ataque de riso (filho de humor involuntário). Criar pode ser criar só um bocadinho, o suficiente para o interlocutor não se ver na solidão de um relacionamento que o subestima, que larga em perfeito abandono sua carência dum bom beliscão cerebral. Essencial.

O óbvio está, pobrezinho (not), sempre atolado no ontem – e não será a senhora Eu quem vai passar pano para o cretino chover diariamente no molhado.

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