quinta-feira, 17 de junho de 2021

Amar um leão é não poder amá-lo


Estava aqui lendo e sorrindo de boniteza o poema de Eucanaã Ferraz, "Sob a luz feroz do teu rosto", do qual destaco um trecho para que compartilhem o sorriso: "[...] amar// um leão é só distância: tê-lo ao lado,/ não poder beijá-lo, o deserto/ que habita em torno dele;// era mais certo amar um barco,/ era mais fácil amar um cavalo;/ amar um leão é não poder amá-lo;// e nada que façamos adoça/ o que nele nos ameaça se/ amar um leão nos acontece:// à visão de nosso coração/ ofertado, tudo nele se eriça,/ seu desprezo cresce". Abençoada seja a poesia e perenes sejam os poetas, que nos presenteiam com a dissecação mais extraordinária das entranhas do mundo e derramam beleza sobre as maiores excruciâncias, como certamente deve ser esta aqui: amar um leão. Amar alguém impossível, não porque as famílias sejam inimigas ou os países guerreantes, não porque o ser amado esteja prometido a outrem ou ameaçado de morte matada e decapitada, não porque elaele tenha vocação para o celibato ou resida numa dimensão paralela; amar alguém que, simples, não deseja ser amado. Ou antes (porque não acredito que exista esse negócio daí de não querer ser amado, o que seria o correspondente emocional a uma criatura biologicamente rejeitar oxigênio): amar alguém incapaz de se deixar amar.

Imagine-se, imagine-se! alimentar toda a concebível ternura por um ser em torno do qual o deserto habita; um coração tão obstinadamente árido que não junta duas palavras menos secas, esfacela-se a qualquer toque, qualquer contato; uma natureza tão duramente constituída que nem uma sombra de sentimento úmido a permeia, e ao mesmo tempo tão arenosa que deixa escoar em desperdício tudo de doçura que a atinge, deixa morrerem as raízes que nela não logram fixar-se. Dói uma agonia hipotética no meio do peito ao considerar esse que deve ser um dos maiores enredos de terrores – ver-se sob a profundidade pré-salina dum olhar assim de desprezo, olhar de quem não veio à terra "para essas frescuras" e no máximo se utiliza física e socialmente do outro para as contingências (ainda assim, com o ar desdenhoso e carnívoro dos que preferiam não estar submetidos a essas misérias dos fracos).

Foi mesmo generosíssimo o eu lírico de Eucanaã Ferraz, ao atribuir leonidade a uns tais indivíduos inamáveis, incomovíveis. Eu os chamaria hienas, abutres, metáforas definitivamente isentas de qualquer esperança romântica – e no entanto compreendo no fundo d'alma a escolha do leão, precisamente pelo halo com que nosso imaginário o glamouriza; não faz assim o coração que, amando, espera pelo melhor e reveste de cores bem mais ricas o que é pó, pedra e fim do caminho, num movimento de aflita sobrevivência emocional? O amador, o amante projeta sobre a ave de rapina oca que tem ao lado, sobre a personalidade comedora de carniça à qual se sente preso, toda a ilusão de amar um leão majestoso, arredio, indócil, porque é fato: dói menos. Machuca bem menos (a autoestima inclusive, ou principalmente) imaginar que estamos atados a uma espécie de gênio incompreendido, de herói atormentado, de personagem bravio e temperamental, quando a realidade crua aponta um serzinho mal-educado, egoísta, frio, bruto, indiferente, perverso, sádico, ruim; um serzinho cronicamente inacessível ao amor, manco daquela partícula que aconchega e humaniza, controlador e tirânico de qualquer respeito próprio que o conje possa remotamente alimentar. "Ah, um dia ele muda" – não muda (ou muda sem dúvida para pior); "um dia ele vai reconhecer tudo que faço por ele" – não vai (e ainda vai declarar que o outro, a outra não era ninguém antes de conhecê-lo, e não seria ninguém depois de deixá-lo). Só um reboot, impossível para quem não é o bichinho de estimação do velho Dumbledore, formataria essa criatura do pântano; - 987% de chance de acontecer, portanto, o que só lega como alternativa um gordo game over.

Sem síndromes absurdas de onipotência, mores: no aquém das páginas de carochinha, considerar-se uma Bela destinada a "resgatar" a Fera é o meio mais rápido de a vida, encastelando-se, definhar.

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