quarta-feira, 16 de junho de 2021

Povo do bem


"O bem. Mostre-me um homem que pensa que sabe o que é 'o bem', e eu provavelmente poderei mostrar-lhe um horror de pessoa. Mostre-me uma pessoa que realmente saiba o que é 'o bem', e eu lhe mostrarei que ela quase nunca usa [ess]a palavra." Fiquei passada de como a citação do hipotético aniversariante Idries Shah, mestre da tradição Sufi que hoje completaria 97 anos, veste estes nossos dias feito roupa de alfaiate. Tem sido – e provavelmente sempre foi – forte e precisamente assim: não há traje portado com tanta constância pelos fãs de violências e atrocidades quanto os gritos histéricos, ostensivos, em favor de uma determinada cepa humana (humanos direitos, digamos, apenas como ilustração aleatória). Não há look tão exibido por amigos virulentos da tortura quanto a bio ultrapiedosa, ultrarreligiosa, ultramístico-perfumada nas redes sociais. Não há modelito tão orgulhosamente desfilado pelos carcarás que esvurmam gritos de guerra e posam com fuzis quanto bandeiras tremulantes pela Pátria, pela Família. Por Deus.

O que me vem inevitavelmente à memória são aqueles assassinos do Investigação Discovery e adjacências que, para melhor disfarçarem sua culpa monumental (não a que sentem, já que não a sentem, e sim a que carregam), são os primeiros a acompanhar de pertinho a investigação, oferecer ajuda à polícia, auxiliar nas buscas, preparar lanchito para os voluntários e bombeiros. Numa sede e num gozo de manipularem mais fielmente olhos que não aprofundam a análise para além da superfície, exageram-se; pintam-se com um histrionismo de palhaços da bondade, outdoors da virtude, painéis luminosos da retidão, muito à moda dos sepulcros caiados bíblicos – lindinhos fora, podres dentro –, muito como os proverbiais fariseus que anunciavam com trombeta suas benfeitorias. A gente fica pasmado que essa farsa ridícula siga dando certo, e assombrosamente dá; até porque, na entourage dos tais pilares da comunidade, acolhem-se não somente vítimas ingênuas, mas outros tantos do mesmíssimo naipe – outros tantos que satelitizam os cidadãos de bem com sua própria cidadão-de-bência; parasitas de hipocrisia, ou hipocrisias jagunças. Um povo que, satisfeitão de achar um guarda-chuva de desfaçatez onde se abrigue, serve aos mentirosos-mor com seus rebanhos particulares e aluga sua lealdade por temporada.

Pode crer: o bem verdadeiro é discreto; uma vez que é, e sabe ou sente que é, sente pouquinha necessidade de parecer que é. Também costuma andar sempre em autoquestionamentos, em desconstruções e análises íntimas de seus motores, de suas atitudes; os representantes do "bem" original de fábrica são humildes, cultivadores natos de empatia, organicamente avessos a meterem o dedo na cara de outrem por considerarem que não são ninguém para julgar – A NÃO SER QUE esse outrem seja fascista machista racista homofóbico explorador safado, que aí o senso de proteção dos demais outrens grita mil tons mais alto que qualquer escrúpulo. Aliás, a galera do beeeeem sabe perfeitamente que escrúpulo não é direitinho o termo: o que impera é um equilíbrio mui claro e consciente entre o respeito devido às individualidades e a voadora que se deve meter no plexo solar dos que agridem e matam as individualidades. Povo do bem pode ser tranquilo, de coração inquietamente filósofo, perseguidor da evolução – porém não é trouxa; conserva discernimento suficiente para saber onde amansar e onde mandar o seu hadouken, embora sua natureza justa e analítica o leve constantemente a demorar um tiquinho. O que lasca é que os autointitulados Detentores do Bem não demoram nem um tiquito para arrasar quarteirões, algo salomonicamente compreensível, visto que quem não ama não teme destruir. Enfim está tudo nisto: cidadãos do bem, ao contrário daqueles de bem, tardam às vezes em responder porque receiam destruir qualquer sementinha germinada no processo, qualquer ensaio de conquista, qualquer sinal de vida insinuada ou brotada. Não concebem que se possa trocar o que quer que talvez haja pelo pássaro que há, esteja ele na mão ou voando.

Dos que berram ameaças e eliminariam tudo pela "causa", fuja: o bem, mesmo, pisa de pantufas para nenhuma formiguita desavisada acordar.

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