domingo, 20 de junho de 2021

Mãos ao alto


Faria hoje 116 anos a corajosa escritora norte-americana Lillian Hellman, que na juventude chegou a trabalhar como crítica literária no jornal New York Herald Tribune e como leitora de roteiro (ou seja: selecionadora dos roteiros a serem lidos pelos produtores) na MGM. Seu primeiro texto para teatro estreou na Broadway – com grande sucesso, embora a peça sobre duas professoras duma escola feminina falsamente acusadas de viver um namoro tenha sido proibida, por exemplo, em Boston, Chicago e Londres – quando a autora contava frescos 29 anos. Por aí já se via a força da guria, que, junto com outros cabeçudos como Dashiell Hammett (seu conje por três décadas), Ernest Hemingway e Arthur Miller, lutou firme contra o nazismo; Hellman inclusive escreveu duas peças antinazistas, em 1941 e em 1944. Nos anos 50, Dashiell e Lillian entraram para a lista de caça às bruxas de Joseph McCarthy, aquele escroque sobre o qual me faltam palavras; ambos depuseram na CPI de "atividades antiamericanas", e o escritor foi preso por seis meses após se negar a delatar colegas. Como é que os escritores reagem a episódios importantes e traumáticos? – escrevendo, naturalmente: em 1976, décadas mais tarde portanto, Lillian lançou o livro Scoundrel time, "Tempo canalha" em tradução literal e A caça às bruxas na adaptação oficial para o português; é dessa obra o trecho que destaco como extrema e infelizmente resumitivo do que temos encarado (vai aqui uma versão aproximada): "Vidas estavam sendo arruinadas e muito poucas mãos se levantavam para ajudar. Desde quando você tem de concordar com as pessoas para defendê-las da injustiça?".

Pois é, Lillian: desde quando? Estranhissimamente, parece que desde sempre, ao menos na concepção dos que não sofrem ou raramente sofrem injustiças – em geral por andarem na calçada do status quo, abraçando a passividade na base da convicção ou da covardia. Até entendo de coração aqueles que o fazem porque são fáceis vidraças, porque estariam na linha de frente (como vítimas, claro) da paulada, execração e tortura a qualquer oscilação do "equilíbrio" social, a qualquer entornadinha de caldo; é legítima defesa que não se pode deixar de compreender empaticamente. Mas aqueles que gozam de alguns privilégios de cor, classe e afins? aqueles que costumam permanecer ao abrigo de perseguições, que tendem a não ser enxergados como alvos preferenciais, que teriam maiores oportunidades de influir contra decisões problemáticas e de brigar por soluções mais globalmente decentes? Como não babar de indignação voltadamente para essas criaturas que assentam, moram e se balançam em berço esplêndido, fingindo tralalalá que o mundo são cotidianos de Instagram e séries de Netflix, e vai girando hi-lili-hi-lili-hi-lo, e não existem nele gritos a serem atendidos nem barbaridades a serem combatidas ANTEONTEM?

Não, os isentões que estão longe de se encontrar em situação de lesa-pescoço (na hipótese de levantarem a voz contra desmandos) não têm desculpa. Sei que as coisas andam polarizadíssimas, que muitos raciocínios foram inutilizados no processo e que por isso, lastimavelmente, qualquer nuance passou a ser inenxergável pelos fanatizados, o que basicamente torna "comunista" todo ser humano favorável às vacinas, à ciência, à máscara, ao isolamento, ao auxílio emergencial e à série de assemelhados que deveriam ser simples consenso humano. Pouco importa. Sério MESMO que pessoas em tese escolarizadas, com todos os recursos e informações disponíveis, podem sentir-se no direito de não se pronunciar contra um genocídio, de não criticar uma política assassina de gentes e ecossistemas, de não espumar de ódio público diante de morticínios promovidos por agentes do Estado, diante de ataques à saúde, à educação e a tudo de mais sagradamente humano – porque não querem ser acusadas de esquerdistas? É isso? Então esse ridículo pudor, esse receio poltrão da opinião de outrens desconhecidos até, tem licença de sobrepor-se à defesa da vida, da justiça, da lógica?? Sorry; que os privilegiados isentões tentem justificar-se até rebentarem de ficar roucos: não há justificativa. NÃO HÁ passação de pano cabível para gente que finge demência ante a realidade acachapante e passa os dias de cara enfiada em vídeos de bichinhos fofos, como se não estivéssemos vivenciando a maior tragédia coletiva da história brasileira; como se ALGUÉM dotado do mínimo de instrução e sanidade não conseguisse ver a desgraça, a miséria, o desemprego, o desmatamento, a destruição que acenam com holofotes de LED na janela de nossa casa, debaixo de nossos olhos.

"Âââin, mas se fosse um governo de esquerda eu queria ver você criticar também, até parece." Oi?? Amorildes, a esquerda se critica até demais, mete escrúpulos inclusive onde não devia – "discute" consigo mesma, por exemplo, se a doutora Nise não foi vítima de machismo, ó céus (hum, deixa eu pensar: não) –, quem dera se tivesse UM graminha a mais de corporativismo. Se eu criticaria abertamente possíveis desmandos de um governo de esquerda? óbvio que sim, pipocas; e continuaria sendo de esquerda pleníssima, sem o menor receio de que me confundissem com alguma direitosa por aí, o que eu saberia de antemão absurdo. O que é certo é certo, o que é da Constituição é da Constituição, e eu realmente não sei como pitombas pode haver dúvida a respeito do que devemos proteger; sempre esteve tudo límpido, translúcido, para quem quisesse se entregar ao bom senso. Dando-se o caso de aquilo que é pró-humano começar a oscilar conforme as conveniências, já temos um problema de fábrica.

MUITO nos separa – fato; porém a natureza, o planeta e o nome científico da espécie nos juntam o suficiente para que todos estejamos nas mãos de todos, e todos tenhamos os demais nas mãos.

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