domingo, 27 de junho de 2021

Envergonhamento utilitário


Sou notoriamente avessa a trotes, pegadinhas e coisas do gênero, mas tenho de admitir que ESTA em questão é da ordem do magistral. Diz que David Keene, ex-presidente da maldita Associação Nacional do Rifle (NRA) nos Estados Unidos, e John Lott, autor do livro More guns, less crime, foram chamados para discursar numa formatura de ensino médio, e incentivados a ensaiar seus discursos in loco, diante de mais ou menos 3 mil cadeiras vazias. Toparam; discursaram; Keene inclusive procurou engajar os "alunos" a estarem entre os que sempre defenderão a infame Segunda Emenda americana, aquela que garante o direito às armas. Acontece que o evento inteiro era fakaço, sequer a escola dos "formandos" existia; foi tudo joguíssimo de cena armado pelos pais de um garoto que havia sido assassinado junto a outras 16 pessoas, em 2018, quando um ex-aluno de uma high school de Parkland (Flórida) invadiu sua velha escola com um fuzil AR-15 em punho. Para seguirem em frente após o caso destroçante, Patricia e Manuel Oliver criaram uma ONG que, naturalmente, faz de tudo pela redução do acesso às armas – estando no balaio desse tudo a genial pegadinha do bem. Nem preciso dizer que as falas do autor e do lobista foram devidamente registradas em vídeo, para engrossarem de imagens altamente simbólicas o material de conscientização da ONG; até porque mesmo o número de assentos vazios que "ouviram" ambos os discursos mostrou-se minuciosamente significativo: 3.044 cadeiras para representar 3.044 jovens residentes dos EUA que se formariam no ensino médio este ano, se não tivessem sido mortos em várias dessas invasões tiroteias.

Evidentemente, os machões armamentistas ficaram fulos com a passada de perna; Lott chegou a declarar que a edição do vídeo distorceu sua fala (segundo Manuel Oliver, não houve edição do vídeo), e que – minha parte favorita – "ele foi incitado pelos organizadores a usar um tom mais incisivo, pois a mensagem seria direcionada a alunos conservadores". Não é fascinante? olha, me disseram para exagerar, aí eu exagerei, porém a culpa é da edição que exagerou. Afinal o paraninfake acredita ou não na papagaiada bélica que anda pregando? Por que pressente a necessidade de defender-se contra alguma repercussão negativa, se atribui a suas crenças um valor positivo? (Não resisto a lembrar um tal juiz que, pelas nossas bandas, negou que as mensagens fossem dele, mas também, se eram, não tinham nada de mais: same energy.) Partindo do princípio que as palavras gravadas tenham permanecido leais ao sentido original, parece um contrassenso fazer o ofendidinho só porque a plateia, que ali não estava, continuaria mais tarde não estando: havendo ou não uma cerimônia depois, o texto dito no "ensaio" já não se bastaria como uma afirmação livre, sincera, espontânea de convicções que TEORICAMENTE não deveriam envergonhá-lo?

É verdade que detesto ver pessoas se constrangendo ou (principalmente) sendo constrangidas, porém a resposta empática involuntária a que chamamos vergonha alheia não pode ficar acima da aprovação consciente ao método, quando o método é maravilhosamente aplicado como foi: para intimidar os poderosos, e não as vítimas dos poderosos. Para expor os que mercadeiam com a dor de outrem, o que se beneficiam do medo e do caos, e não os que carecem de proteção em meio à própria ignorância. Sim, de permitir que os especuladores, os exploradores, os parasitas, os vendedores de tudo que fere e mata embaracem a si mesmos, sou imensamente a favor – não tenho como não ser; sou a favor, no entanto, com a condição de que a criatura a ser exposta acabe por autoacusar-se da maneira mais natural possível, como aliás aconteceu na peça pregada pela ONG dos Oliver. Que a pessoa seja tapeada sem maiores consequências, ao estilo do plano da formatura (no qual os engabelados falaram o que já falariam em público de qualquer forma, pela própria vontade), va bene; mas que se arme uma espécie de cadafalso moral, uma armadilha totalmente fora das CNTP em que o cidadão seja manipulado por algum implantado desespero, e reaja portanto a uma ameaça artificial que "contamina" a amostra – aí não. Claro que não me refiro a confissões de casos policiais, obtidas à custa daquelas velhas táticas psicológicas que vemos em filmes e séries: good cop/ bad cop, "Fulanílton está ali naquela sala te entregando agora mesmo" etc. Isso é coisa completamente outra, que admite todas as mistificações (que NÃO envolvam tortura) em nome do bem coletivo. Aqui em nosso case, trata-se de produzir o cenário a fim de que a estrela vá lá e atue, e alguém vá lá e registre, simples; sem dizer que, sei lá, sua família foi sequestrada e só será liberada se você gravar esse vídeo – o que seria odioso de fazer até com o maior dos maiores psicopatas, e o que corromperia inteiramente o resultado, por sinal, já que tudo de que o nosso lado não necessita é de gente do dark side chorando pitangas e alegando que se tornou mártir.

E o pior: parecendo ter – ou tendo – razão.

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