quarta-feira, 9 de junho de 2021

Em vez de descascar batatas


Li agora comovida uns versos da portuguesa Ana Luísa Amaral, que em seu poema "Testamento" pôs o eu lírico a suspirar sobre pegar um voo e ter medo: "Se eu morrer/ Quero que a minha filha não se esqueça de mim/ Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada/ E que lhe ofereçam fantasia/ Mais que um horário certo/ Ou uma cama bem feita/ [...] Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes/ Em vez de lhe ensinarem contas de somar/ E a descascar batatas/ Preparem minha filha para a vida/ Se eu morrer de avião/ [...]/ E mais tarde que diga à sua filha/ Que eu voei lá no céu/ E fui contentamento deslumbrado/ Ao ver na sua casa as contas de somar erradas/ E as batatas no saco esquecidas/ E íntegras".

Mesmo sem ser mãe ou pretender sê-lo, como não empatizar com a agridoçura duma perspectiva assim? velar a filha, o filho a uma distância celeste e alimentar zelosas apreensões a respeito do que ele/ela receberá em substituição do amor insubstituível: que nó imenso para gargantas maternas. Fosse eu o eu lírico – a eu lírica – de Ana Luísa Amaral, estremeceria igualmente à ideia de uma educação fazedora de contas e descascadora de batatas (embora não negue o aspecto utilíssimo de ambos os talentos); transbordaria as mesmas esperanças de que a criaturinha em formação se formasse entre fantasias oferecidas e cantos cantados com desafinada ternura. Que pânico de lançarem a alminha moldável e fresca numa criação meramente utilitária, francamente denotativa, objetivamente supridora, que derramasse celulares, vitaminas, cursinhos, games e assinaturas da Netflix num terreno carecido apenas de vida abundante, de vida só!

Se eu fosse mãe e morresse de avião ou de qualquer outra coisa, teria desejado que a criatura-filha continuasse a ouvir poesia todo o tempo, todo o tempo; que alguém lhe ensinasse letras e músicas dOs saltimbancos; que lhe explicassem cedíssimo a treta das classes sociais e a impregnassem da máxima: na dúvida, fique ao lado dos pobres; que lhe fosse permitido tomar banho de chuva ao menos uma vez, com as devidas prevenções contra raio e pneumonia; que mãos delicadas lhe construíssem uma cabaninha na sala, devidamente almofadada e fornida de livros a botar pelo ladrão; que lhe fosse contemplado o direito de ter tradições de família, pratos-assinatura no Natal, rituais sagrados, canteiros de memórias; que as não compreensões de escola fossem somente circunstâncias, jamais centros, e não empurrassem sequer um graminha para baixo as serenidades da autoestima; que todos os próximos e amados lhe cultivassem n'alma a sereníssima verdade, a paixão e a facilidade dela, escorrente pelos poros; que lhe fosse natural escolher quaisquer brinquedos de sua preferência – com a exceção indialogável das armas de todas as espécies, banidas até sob a forma de pistolinha d'água. Eu teria sempre desejado saber a criatura-filha mais confiante que bela, mais partilhadora que bem-sucedida, mais generosa que eficiente, mais resistente que poderosa, mais criativa que focada, mais dedicada que genial. Leal, gigantescamente. Vulnerável. Humilde com robustez de brios.

E íntegra.

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