quinta-feira, 3 de junho de 2021

Gaiolas


144 anos do pintor, desenhista, ceramista, gravador, ilustrador de livros, de tecidos, de tapeçarias e de móveis, decorador de interiores e de espaços públicos (ufa!) Raoul Dufy. Fascina-me em geral a coloridice de suas telas, inicialmente mais impressionistas e, na sequência, mais fauvistas, flertantes com o cubismo; mas talvez nenhuma tenha me impressionado tanto quanto La cage à oiseaux (A gaiola de passarinhos), esta que vos sorri sobre o texto, cheia de instigâncias. Caindo nela, meu primeiro olhar foi de – look! uma daquelas colchas tradicionais americanas (perdoe-me o francesíssimo pintor pela heresia geográfica), uma daquelas costuras retalhadas de vida, compostas de vários tantos do que se é. E o fato de se tratar de uma gaiola deixou a conclusão irresistível: são também compostas de vários tantos as nossas gaiolas; nunca é de uma só matéria nossa jaulazinha personalizada, nunca é feito duma única sombra o nosso fantasma portátil, il faut que vários pedacitos de trava e de medo entrem em concerto para nos aferrolhar.

Nascemos envelopados numa carência abissal, absoluta, e desde os momentos iniciais fomos presas fáceis de todos os terrores: que mamãe sumisse, que ninguém estivesse perto, que o velho e preferido brinquedo simplesmente evaporasse, que os quadros de família se mexessem, que Papai Noel não viesse. Anos adiantando-se e nós com medomedomedo de enjoar no ônibus, de aparecer com aquele corte de cabelo na escola, de ver nossa nota baixa divulgada pelo aluno mais entojado da turma, de comprar (ou ganhar) presente porcaria no amigo oculto, de resolver a equação no quadro, de apresentar o seminário lá na frente, de deixar o bilhete-declaração na mochila do crush. Em especial na infância tudo se agiganta, tudo nos paralisa, tudo é proporcionalmente excessivo dentro de espaço de vida tão curto – e isso as infâncias redomadas, protegidas; que dizer então daquelas sujeitas à pestilência da morte cravando-lhes balas perdidas diariamente à porta? que dizer daquelas vividas em áreas de tráfico, milícia, guerra civil, guerra étnica? que dizer também das que vivenciam o terror de portas adentro, entre pais/padrastos/tios/avôs abusivos, entre os assaltos de doenças, ausências e fomes? que dizer das identidades crescidas sob uma gama de horrores absolutos, em acréscimo à sua justa cota de horrores inocentes?

Do azul da adolescência em diante, são mais não-sei-quantos apavoramentos e dissabores que as asas soltam – prisões diurnas e noturnas (agora talvez mais distintas entre si, interiormente, do que eram nas vaguidões da infância), como aliás a gaiola de Raoul Dufy bem ilustra, com seu lado mais ensolarado e seu lado mais penumbroso, sua porção de pássaro aparentada com a tradicional pomba da paz e sua porção de pássaro que poderia grasnar "nunca mais!" num verso de Poe. O dia engaiola jovens e adultos com horários de assinatura de ponto, catracas eletrônicas, jaulas ambulantes das quais só consegue fugir quem se materializa no emprego, jaulas fixas que estão no próprio emprego, assédios morais, aumento do gás, contas que não fecham, mensalidades que não se pagam, WhatsApp que apita, solicita, chama, faz drama. A noite oprime com o cansaço que desencoraja leituras e demais lazeres, oprime com a insônia que acaba de transtornar psiquês e corpos, oprime com caraminholas filhas da insônia que saltitam num festim sádico: você é gordo, você é feia, você é incompetente, você é mãe ausente, você nunca bate as metas, você nunquinha vai dar matches, você não merece likes, você é uma fraude. Umas e outras gaiolagens então se retroalimentam, se apoiam e se abraçam num mesmo aramado, uma mesma instalação de Jigsaw com múltiplas penas para o mesmo passarinho.

O menos mau é que uma leva de penas não deixa de nos dar asas, eus-passarinhos não deixam de reagir pavões-misteriosos, e não deixa de haver dores (relevem o mix de biologias) que nos empurram para o parto, para a porta, para fora. Há dores de definhar e permanecer – mas também há dores de fechar a cara, fechar a mala, perder o medo, ganhar a vida, ganhar o mundo; dores de ir embora.

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