sábado, 26 de junho de 2021

Margaret

Fiquei, de cara, apaixonada por Margaret, a extraordinária obra do britânico oitocentista Edward Burne-Jones que podem conferir acima, toda força e suavidade azul. Poucas vezes vi, em tela, expressão tão estarrecedora, justamente pelo derramamento de delicadeza que adoça ao extremo uma bem imensa amargura; espiem que tons etéreos, que leveza de céu nublado parece constituir a quase imaterialidade dessa mulher que sofre – que sofre até o ponto de praticamente nem sofrer. Como sabemos que sofre? Ora, ninguém há de se enganar com essa mansidão cromática, convenhamos; os braços defensivos e cruzados, o olhar focado no limbo deixam poucas frestas para dúvidas: Meg (pego intimidade fácil; permitem que eu a chame de Meg, não? gratíssima) está evidentemente, esvaziadamente, estraçalhadamente exausta.

Trata-se de uma esposa; ah, sim, é uma esposa. Uma esposa pequeno-burguesa, simples nos trajes, cabelos preeeesos para que não se desatem sobre a lida; o vestido é de trabalho, muito sóbrio, muito afeito ao que sua esposice aparentemente vem sendo: talvez azul de início, e agora dum acinzentado que cada vez a cobre de mais outono. Meg tem hoje 30, 31 anos; casou-se aos 26 – "tarde" para padrões século-dezenovos, mas muito em harmonia com sua juventude sobretudo calada e caseira, crescida entre os serões dos poucos e bons amigos intelectuais de seu pai jornalista. Ela ouviu sedenta e bastantemente, estudou em muitos livros noturnos e nunca se ocupou de fato com ânsias de casamento; nem da mãe nem do pai (amorosos e esclarecidos tanto quanto se podia ser há dois séculos) lhe veio qualquer pressão, quaisquer observações etárias daquele tipo que infernizou gerações e gerações de antepassadas. Mas enfim calhou de aparecer nos serões, munido de sorrisos sóbrios, moderados, um colega do pai sete anos mais velho que ela, bom de palavra como se espera da profissão, inglês mesclado de irlandês e italiano; falou-lhe da mãe, da irmã, do sobrinho, das dificuldades para completar os estudos e sustentar seus dependentes, das leituras também mui noturnas e roubadas ao sono – e a moça, admirando simpaticamente aquele comunicativo mas modesto, sério mas sociável rapaz de família, sentiu alguma coisa similar a apaixonar-se, passou mesmo a faiscar duas vezes mais seus olhos piscinissimamente azuis, a cantarolar durante o dia, até. O tal (um que chamaremos de Brogan) não se fez desentendido e a pediu em casamento dentro de duas semanas; cinco meses depois dos primeiros serões, estavam matrimoniados.

O casal acomodou-se, porém, na mesminha casa onde Brogan vivia com sua família de três sustentados, e Margaret foi bem cedo compreendida como uma extensão do marido no que dizia respeito aos cuidados com seus in-laws: precisava acompanhar em quase alarmantemente tudo a sogra idosa, tratar do pequeno Devin enquanto a cunhada viúva realizava (com notório mau humor) seus vários serviços de costura, aturar as mal-agradecices sempre secas da mãe do menino, pouquíssimo apropriada para se transformar na irmã que Meg esperou ter. Curto período deu e sobrou para o breve lampejar romântico da recém-esposa ir mirrando e ressequindo na rotina que se provou vazia de horas para ler, para amar, para sonhar um filho seu, para até não imaginá-lo – caso viesse a ser concebido – como um possível intruso que só chegaria ali como um novo estômago. Brogan, que não era propriamente violento, não era gentil o suficiente tampouco; todas as suas leituras de travesseiro não o haviam tornado maciamente apto para compreendê-la, ele que (agora ela sabia com uma dor que doía agudo) confundira os modos discretos e inexpansivos da futura mulher com uma objetividade, uma praticidade, uma amelidade que ele buscava e ela não tinha. Sob a desculpa de muito trabalho, deixou quase imediatamente de estimular na esposa qualquer pretensão dum cotidiano mais florido, mais terno – daí o estiolamento atual dos olhos de Meg, que já há quatro ou cinco anos são olhos assim constantemente submersos no que seria, no que deveria ser. Arde mais por não ser um desespero que grita, e sim um que lentamente enlouquece, como as febres que minam sem manifestar-se; o que ainda vive, vive exclusivo para dentro, enquanto todas as paredes não se fecham e todo o azul não desbota.

(Quantas Margarets não são drenadas até da última faísca de ajustar a rota.)

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