sexta-feira, 11 de junho de 2021

Êxtase


Novidade nenhuma eu me declarar eventualmente apaixonada por pinturas com que tenho a alegria artística de esbarrar; ontem foi dia de cair de amores por esse belíssimo Ecstasy produzido, em 1908, pelo húngaro Lajos Gulacsy – cuja obra, caso tenham a delicada curiosidade de perseguir, é farta nesses traços mágicos e místicos como a própria Hungria, a fascinante Hungria. Era, eu sei, uma tela mais adequada para amanhã, nossa data enamorada; mas é fato que esses transbordares não cabem nem devem ficar presos num só dia, e seria bem um desperdício e um contrassenso conhecer uma lindeza chamada Êxtase e reagir estática em vez de extática, focada e não tocada, mais tino que instinto. Arrebata-me, beleza, eu lhe disse – sendo também o que os apaixonados do quadro parecem dizer-se –; a vida é sempre curta demais para a gente não se alumbrar agora.

Foi aliás inevitável dar de olhos no êxtase de Gulacsy e lembrar um alumbramento de Mia Couto, aqueles extraordinários versos que adoro tanto: "Não quero o primeiro beijo:/ basta-me/ o instante antes do beijo.// Quero-me/ corpo ante o abismo,/ terra no rasgão do sismo.// O lábio ardendo/ entre tremor e temor,/ o escurecer da luz/ no desaguar dos corpos:/ o amor/ não tem depois.// Quero o vulcão/ que na terra não toca:/ o beijo antes de ser boca". Isso é tão, TÃO imensamente bonito e tão palpavelmente enamorado que o arrepio de compreensão nos percorre inteiros; o instante antes do beijo, esse vivido com gana e arroubo e hipnose e fissura pelos personagens retratados, – ESSE é o da exata felicidade congelada, a definição mesma do céu do amor, não sendo certamente à toa que nosso casal parece ser coroado de flores-quase-estrelas sem que elas se justifiquem por qualquer denotação. O êxtase mesmo do paradis à deux não é o desenlace, é a espera, o percurso, o perfume, o presságio, é a longa percepção das pulsações síncronas, a doce demorosa análise do que os outros olhos dizem e aguardam; não é o ir, é o desejo de ir; é o vem: o suspenso, o pedido, a promessa. O haver formigamento sem haver pressa.

Vejam, vejam como quase que não há outra ilustração para o poema de Mia Couto; "o lábio ardendo entre tremor e temor" – percebem a ansiedade vermelha no espaço que separa ou une as bocas, feito emanação do fogo interno? –, "o escurecer da luz no desaguar dos corpos" – veem como ele e ela se desaguam mutuamente, se confundem num mar de físicos indistinguíveis, se misturam (ele especialmente) ao ambiente que também os abraça, como quem no tudo de todos os tempos se dissolve, se derrete? Ela se funde a ele, ele se entorna nela e no entorno; são ambos lava escorredoura, meio brasa, meio cinza, meio fluida e brandamente invasiva, meio flutuante e dissipada em cada palmo que a toca. Os centros mesmos dos vulcões não se tocam, e os amantes se beijam com os braços, com os olhos, com a postura e o peito, a contemplação e a entrega, todo um corpo e todo o outro corpo ante o abismo recíproco, muito antes de o beijo virar boca. O beijo, para sê-lo pleno, não é o princípio: o beijo é a constatação.

E o amor – esse – não tem depois, nasceu integralmente sem o cronômetro do jogo. Habita simultâneo o já e o logo.

Nenhum comentário: