segunda-feira, 21 de junho de 2021

Pescaria


Achei lindinho que a poeta, cantora e paisagista Natalia Barros tenha dito, num dos poemas de seu livro Nuvens ornamentais (aliás, que título adorável): "escrever é uma pescaria/ se voltar com o peixe,/ escrever é isso/ se não voltar com nada,/ escrever é isso". Tão simples, tão real; escrever é exatamente isso, ou seja, exatamente nada exato, nada garantido, nenhuma ciência de seguir fórmulas e ajuntar quantias – salvo, talvez, na produção de redações de Enem, que são sim mui constantemente medidas, pesadas, roteirizadas como um cálculo estequiométrico (ah, quantas saudades NÃO tenho desses terrores químicos!). Em textos assim pendentes para o técnico, não há que esperar o peixito abocanhar a isca: têm-se os dados, organizam-se os dados, aplicam-se os dados, sem necessariamente a expectativa da beleza e apenas com a da coerência; é o escrever-tarefa, o escrever-função – desvinculado de prazeres e lazeres, resolvido na base da rede utilitária e não na do caniço paciente, demoroso. O escrever literário já é distinto e adota o caniço, visto que teoricamente não é obrigatório nem demanda imediatismo e volume; se retorna com o samburá abastecido e muitas linhas escritas/fisgadas, muito bem, e se retorna com o cesto e o arquivo vazios após um longo silêncio à beira d'água, faz parte. Tende apenas a ser muito mais doloroso o silêncio da página vazia, considerando que a pesca não configura um esforço de criação e, por isso, pesam consideravelmente menos suas ausências.

Mesmo o silêncio da página vazia é gritante no processo, entretanto, porque a ausência que representa é ilusória; nem sempre os peixinhos do escritor se dignam fazer-se visíveis. Escrever literariamente é um derramamento de tempo, ninguém pode evitá-lo, e ninguém pode evitar que se continue escrevendo longe do lápis, da caneta, do teclado – que se digite mentalmente no banho, que se anote sem mãos uma ideia pinçada num filme, que se voe para milhas away durante uma conversa a fim de amadurecer um embriãozinho ocasionalmente inserido. Na realidade a pesca escritora mal chega a ser ir e voltar: é uma situação de permanência. De residência. De demência, quase – uma vez que o infeliz sujeito a essa sisifidade não raro passa o dia subindo pedras, ainda que pedras imaginárias, para à noite vê-las ruir. E que não se suponha menos desoladora essa perda de presas imateriais; ser obrigado a renunciar ao que ainda não se escreveu, mas que por algum motivo recaiu de luminoso em desanimador, escapa bem pouco de ser uma espécie de miniluto mental, um vácuo duma parte nossa que poderia ter sido.

O escritor brinca de e trabalha em querer e fugir ao querer – o tempo todo. Verdadeiramente o tempo todo. Tem vontades de temas, luta intimamente contra temas que não deseja fisgar mas que o abocanham (sim, não faltam Jonas temáticos sendo arrastados por essas Moby Dicks), sonha ver-se roteirizado mas se arrepia de pensar em roteirizar-se – e se arrepia mais de pensar em infiéis que o roteirizem –, cansa de escrever e quer só lerlerlerler, sendo porém que no leeeeer acaba pescando mil e tantos outros motes e enredos que o atormentarão e puxarão a linha até materializar-se. Vive enfim tanto na busca quanto no ser buscado, aproximando-se afinal (se é de pesca que se trata) muito mais de um Tubarão way of life do que daqueles filmes-de-fazer-as-pazes-com-papai-na-casa-do-lago em que se senta placidamente na margem ou no barquinho e se sustentam conversas profundas entre o farfalhar de árvores ensolaradas.

Seja onde for que o escritor navegue atrás de seus tesouros brutos e líquidos, vamos sempre precisar de um barco maior.

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