terça-feira, 29 de junho de 2021

Domicílios no tempo


Entre as mil belezas de frases atribuídas ao aniversariante de 121 anos-hoje, Antoine de Saint-Exupéry (não estou mais contando a xaropada do essencial invisível aos olhos nem a da eterna responsabilidade sobre o que cativamos – continuam coisas muito verdadeiras e bonitas, eu apenas NÃO SUPORTO mais um dia sequer de repetição), fico particularmente encantada com uma comparação agudíssima costurada pelo autor: "Os ritos são no tempo o mesmo que o domicílio é no espaço". Concordo bastantemente – o que não significa que eu aprove com irrestrição os ritos todos, ou pelo menos não todos os protocolos. Aqueles que assinalam com arrogância burrocrática qualquer diferença entre os participantes, por exemplo, comigo nem com a minha paciência contarão nunca: uma criatura ter de meter um Vossa Excelência ou Vossa Senhoria para se dirigir a alguém (como me IRRITAM as sessões da CPI por causa disso!), um ser da família real de alhures precisar andar tantos passos à frente ou atrás de outro ser, ter maneira certa de acenar, sapato certo para calçar, jeito determinado de viajar e assemelhados. Outros cerimoniais que me despertam o mais assomado ódio são os militares – aquele rigor, aquela secura de gestos inaturais, aquela automatização de corpos milimetricamente alinhados, passados, engomados, ritmadinhos num só compasso, mal respirantes para que o braço ou a perna não desenhe um ângulo dois graus a mais ou a menos que o prescrito pela norma. E as continências, os olhares que não encaram, as ordens gritadas, as respostas idem; oh, não, não! eu me transfiguraria em domadora de dragões, em vassoura do desenho do Pica-Pau ou num equinodermo antes de participar por nove segundos desse horror padronizado e profundamente violento.

Os rituais que, feito Saint-Exupéry, eu considero uma espécie de residência construída sobre o tempo (ou no mínimo um farol) são de outra ordem: são as marcas da mudança de fase, do êxodo particular, do atravessamento de uma qualquer fronteira. Há quem revire os olhos desconstruídos e ache de uma tolice robusta as becas e discursos duma cerimônia de formatura, digamos; ou ache cafona a mise-en-scène do casamento; ou se recuse a comemorar aniversário, Natal, virada de ano, Dia dos Namorados, Dia das Mães e tudo mais que integra nosso calendário de obrigações felizes. Convenho que ninguém é forçado a gostar ou participar de cada miniefeméride, ninguém é compelido por lei a ser arroz duma festa que só poderia frequentar em estado de hipocrisia – aliás, maldita seja a hipocrisia, praga carnívora dos corações frustrados –, porém sou da crença que balizas temporais devem sim ser fincadas de alguma forma, não necessariamente a mais tradicional do universo. Nada impede um casal de celebrar sua união com um luau ou um baile veneziano, uma excursão com a galera à Disney ou uma noite épica no karaokê (quer dizer, atualmente a pandemia impede, mas vocês me entenderam); nada impede que se empreguem os mesmíssimos exemplos para aniversário, colação de grau, réveillon; nada impede que um Dia dos Namorados tenha mil tsurus como presente, ou maratonação de Netflix, ou acampamento na sala, ou uma aula conjunta de lambaeróbica. O que não convém é deixarmos que a folhinha inteira se escoe igual, sem intervalos holidayros, plana, bege, indiferente; e a graça das fugas? e a engenharia de memórias? Como é que se criam álbuns e biografias internos, se não há bandeirinhas sinalizantes, se não existem divisas?

Durante a (infelizmente ainda operante) passagem desta covid dos horrores, milhares, milhões de mortes de amados ficaram assim como que em suspenso, por demais súbitas e irrealizáveis, exatamente porque a crueldade do contágio cancelou os últimos ritos, os velórios, as vivências essenciais aos viventes para que se apossem do momento e se despeçam com toda a materialidade terapêutica. Porque, sabiamente administrada, é isso a materialidade: não uma prisão, mas uma terapia; uma residência segura e definida para a catarse, para o extravasar do luto – por mais que este evidentemente transborde, e não deva ser recriminado até que o tempo acabe de dissolvê-lo com gentileza. Uma residência segura e definida, também, para o extravasar da alegria, quando é de alegria que se trata, porque (a não ser no carnaval, muito possantemente arrastador e coletivo) há inúmeros contentamentos tímidos demais para se crerem com direito à expansão. Há gente cuja cantareira de animação está perpetuamente cem, oitocentos, três mil litros mais cheia que a de seus pares – gente que necessita de passe livre para a loucura que a habita, esse saudabilíssimo apetite de vida que nos acomete entre os compromissos de trabalho inadiáveis e as idas ao mercado expressas.

Marcos no tempo acendem (alívio!) a luz verdinha: poesia, sim, numa hora dessas.

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