sábado, 5 de junho de 2021

Desejos vagos


Às vezes não temos senão desejos ciciantes e vagos. Subitamente (por exemplo) o querer voltar a museus, passeá-los inteiros, mas agora sem a pressa e as fotos do turismo: passeá-los simplesmente, pronto, observando pinceladas com secreta ternura no calmor da tarde, livres de guias e horários e relatórios, sozinhos ou a dois no máximo – grupos tornam museus sustentáveis no orçamento e inviáveis na circulação. Desejos vagos, também, de dar similares esvoaçagens sobre cenas da poesia contemporânea, ler nomes lá e aqui a esmo, não porque modinha est; ler em perfeitíssimo descompromisso o que não foi apontado, recomendado, solicitado, o que não entra em nenhuma banca ou currículo, o que não está sendo discutido em esferas vizinhas, o que existe apenas, vivo e limpo. Desejos alegremente sonolentos de zapear programações alternativas, de dar chances a canais faladores de línguas (sob nossa perspectiva de ouvintes nativos de Hollywood) inusitadas, com outros ritmos, outras modulações, outros respirares de mundo. Desejos não tão abstratos de escapulir pelo mundo.

Às vezes nos percorrem vácuos de qualquer coisa distinta, de descobrir numa rua paralela uma delicatessen grávida de ótimos patês e chás caramelados, de esbarrar com um cafezinho enfeitado pelo enroscar de flores na treliça, de flanar pelo YouTube ouvindo artistas anônimos de Bangladesh ou da Nova Zelândia, de rever cenas da novela só por reouvir um sotaque e uma voz (sim, eu reescuto trechos dA vida da gente, me julguem), de apertar a "página aleatória" na Wikipédia só para ver o que vem no caniço (já ouviram falar em Dinastia Bagratúnio, da Armênia? confesso que achei o nome lindão), de escarafunchar jornais velhíssimos só para flagrar pitoresquices de tantos eus precedentes, de escarafunchar imóveis velhíssimos na esperança de um cômodo secreto ou uma cápsula do tempo, de deslizar por feirinhas à beira do Sena até topar com um diário vintage como em Meia-noite em Paris, de descoser um bilhete d'amour duma peça de brechó, de achar declarações novelescas num livro de sebo, de resgatar uma foto de casal presa no fundo dum móvel de antiquário. Desejos pequeninamente suspirantes – quem nunca? – de atingir ou inventar tesouros em plena quarta ou quinta-feira.

Às vezes um não-sei-quê (sei: a programação do Home & Health) nos implanta desejos metamórficos para nossa já estabilizada vida, nos dá ganas de incrementar a decoração, de trocar os móveis, de aprender moldes, de aprender receitas, de tentar intempestivos DIYs. Desejos de nadas e tudos, desassossegados, esquisitos, feito caprichos de gato; desejos de empregar palavras nunca pensadas, de usar títulos que brotaram na memória, de pesquisar a fundo um assunto irrompido e cismado, de matar de repente uma curiosidade que não é de hoje, de arrumar gavetas sempre adiadas mas repentinamente atrativas, de encomendar biscoitos amanteigados, de FAZER biscoitos amanteigados, de estrear roupas em casa mesmo, de improvisar um acessório steampunk, de destremalhar antigas e inadequadas bijus a fim de parir novas, de bolar algum artesanato com cabides. São ora desejos-fumaça, ora desejos-cafeína, ora de pálpebras pesantes, ora de aflições insones; são desejos que espicaçamos como quem brinca, que alimentamos como quem faz um jardim de motivos, que abraçamos com espreguiçamento mas com alma, visto serem sempre uma dança de sol pondo a obviedade da sala mais colorida.

São desejos que nem a vida.

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