quarta-feira, 23 de junho de 2021

Minha tribo


Tenho revisto A vida da gente por motivos de Lícia Manzo, e me soou particularmente quentinho quando ontem a doutora Celina (personagem de Leona Cavalli) exclamou feliz para o amigo Lúcio (Thiago Lacerda), a respeito do reencontro deste com uma ex-colega de escola, também médica, que assim como ele andava sempre engajada em projetos sociais: "Ah! mas é tão bom quando a gente encontra alguém da nossa tribo, não é?" Sim, é tão bom, assenti de imediato aqui no revestrés da tela; é tão bom e é o que tem nos salvado. Diante dum ensandecer cada vez mais explícito de um dark side cloroquiner, terra-planer e antivaciner, diante dumas salivações hidrófobas que ameaçam golpes e mortes em plena luz da democracia, diante de uma onda estapafúrdia de desequilibrados que se sentem espantosamente à vontade para dar na cara de quem lhes solicita o uso da máscara, ou para desfilar de suástica no shopping, faleceríamos por dentro se não respirássemos o ar de nossa tribo – ainda que por meio de redes sociais e semelhantes recursos, que afinal somos os primeiros a honrar todos os cuidados, todos os saudáveis distanciamentos. Há nesse contato (mesmo virtual) o reconforto indizível de retornar ao humano, ao idealmente humano ao menos, talvez não tão barulhento quanto os histéricos que precisam berrar sua reafirmação pessoal, mas certamente três bilhões de vezes mais poderoso quando nos mergulha em sua existência oceânica.

Não tenho, óbvio, a pretensão de estar permanentemente certa – céus, que sei eu?? –, porém em termos de lado certo da História posso dizer que me agarântio, que não vejo muito espaço para dúvidas ou para sequer nenhumas, em contemplando nas trincheiras opostas uns seres que orbitam outro ser como aquele que não preciso mencionar. Basta-me a certeza de que minha tribo acolhe diferenças (diferenças lealmente consideradas: não o "direito" de ser nazista ou de achar que "pessoas morrem mesmo, vou fazer o quê?"), de que minha tribo acredita forte na palavra científica, sabe muito bem que é orientação e não opção sexual, adora festivais de cinema porque os considera uma ode à beleza da diversidade, vigia a própria linguagem por estar ciente de que ela chegou a nós impregnada de termos machistas, racistas etc. que devem ser limados, destruídos, extintos. Minha tribo é apaixonada por arte, permanece aberta a novas estéticas mesmo tendo suas favoritas, pode seguir sua própria religião e exatamente por isso não oprime nenhuma outra, de jeito nenhum fica quieta diante de injustiças e descalabros, não vê problema algum em ser chamada de "comunista" dia-sim-dia-sim, inclusive adora (apenas revira os olhos, enfastiada de impaciência, ao obter abundantes provas de que o interlocutor em questão não faz a MAIS VAGA IDEIA do que seja comunismo). Minha tribo cheira livros, cheira a livro e tem veneração por bibliotecas.

Minha tribo se informa minimamente antes de dar opinião sobre o assunto. Minha tribo ama ternamente o padre Júlio Lancellotti. Minha tribo não hesita em apoiar Lula e Boulos de maneira escancarada. Minha tribo é contríssima as privatizações, não discute: FOI GOLPE, quer que a bolsa de valores se daaaaaane, sonha com um mundo quentinhamente alimentado três vezes ao dia, acha que não deveria existir bilionário (é uma aberração, convenhamos), apoia as cotas como uma medida viável de promoção da igualdade, fica revoltada com a perseguição aos professores, aplaude de pé a doutora Natalia Pasternak falando sobre a pandemia, encontra-se em desespero por ver o Salles passando a boiada, não consegue sequer ouvir a voz do coisonildo-em-chefe sem ter seríssimos engulhos que nem Dramin dá jeito. Minha tribo anseia, dia e noite, por assistir pipocamente ao julgamento dessa criatura láááá na Holanda, e por ver seus horrores desaparecerem daqui sem deixar traço.

Se você se irmanou com a descrição: a carteirinha de admissão na tribo é um abraço.

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