domingo, 13 de junho de 2021

Questão de sobrevivência


Lembro, nestes 120 anos de morte do escritor espanhol Leopoldo Alas "Clarín", uma sua frase talhada para nos aquecer em meio aos tempos que aí vão: "Apenas a virtude tem argumentos poderosos contra o pessimismo". Devo confessar que fico grata pela parte que me toca, ou pela carona que Clarín se dignou a me conceder, já que, bem, costumo ter argumentos poderosos contra o pessimismo – embora seja a primeira a reconhecer: no meu caso é questão de sobrevivência, assim muito diretazinha e prática; sei lá se há qualquer virtude numa legítima defesa. Minha pobre psiquê absolutamente refratária ao pessimismo não é, creio, mais virtuosa por se agarrar à lógica que a impede de esfacelar-se, e se alguma qualidade tem é a de não se supor nunca sem alternativas nem se deixar esmigalhar sem uma surda e teimosíssima resistência.

Em termos de vida pública, pelo menos, simplesmente ME RECUSO a ser emocionalmente achatada sob efeito dos vermes que neste momento têm o cetro na mão, ainda que se empenhem com toda a fibra em tornar o país irrespirável (literalmente, inclusive), ainda que nos façam estalar todos os dias de raiva sufocante, engasgadora. É raiva justificada e reativa, inteiramente diferente da que habita os pudins de ódio ora sentados no poder; é raiva aliás do próprio ódio que representam – e por isso, apesar de fumegar e borbulhar em lava incandescente a cada novo atentado, a cada novo ACINTE, é uma gana mui capaz de esperar e disciplinar-se, e até se deixar amenizar pelas cotidianices enquanto trabalha em segundo plano. Tão poderoso é o desejo de recuperar o mínimo estado de civilidade, o mínimo respeito coletivo ao bom senso, que essa rrrrraiva dos atuais absurdos – na impossibilidade de resolver as tretas à maneira de Carrie, a Estranha – se sublima em confiança e racionalidade: o reinado do terror não dura, nunca dura, nunca dá certo, nunca se estabelece perpetuamente, SEMPRE cai. Que Alas "Clarín" chame a isso um pensamento virtuoso, se prefere; eu chamo (talvez tendo diante dos olhos o mesmo objeto que ele) de uma percepção histórica equilibrada.

O que a História nos segreda muito arrazoadamente? Fascismos despencam cedo ou tarde, como dois e dois são quatro; excessivas maldades e excessivos narcisismos implodem fatalmente suas bases, já que, com seu invertido toque de Midas, destroem tudo que lhes cai no entorno; os maus não captam lealdades, compram parcerias – e um dia as perdem, quando não podem ou não querem pagar; países que não se ajustam à vibe internacional de sustentabilidade viram lugares insustentáveis, proscritos, párias, o que desagrada bastante a empresários nacionais que ficam sem amiguinhos para brincar e fazem tuuuudo para recuperar esses amiguinhos; os livros didáticos são escritos por gente com a cabeça razoavelmente organizada sobre os ombros, e vai daí que a posteridade não perdoa os piores chacais que já respiraram sobre o planeta – sua memória e a de seus apoiadores há de ser inexoravelmente infame pelos séculos dos séculos, motivo de vergonha profunda e desgostosa. Isso são certezas gerais, temos também as específicas: de que a CPI da covid continuará rendendo baciadas de material para Haia, de que as pesquisas são claríssimas quanto ao resultado do segundo turno no ano que vem, de que as manifestações pró-coiso andam brochando a olhos vistos e só podem ser marcadas numa cidade de cada vez, do contrário o vexame é ainda maior – enquanto as REAIS manifestações populares anticoiso tomam o país inteiro simultaneamente, pujantes, aumentadouras. Não é questão de otimismo, é questão de ter olhos para o factual e confiar no processo, confiar que os movimentos lógicos da História se farão caso nós os façamos. É de virtude que se trata? talvez, visto ser ela quem se dispõe aos protocolos básicos para chegar a cumprir a "profecia" histórica; seu impulso de realizar o coletivo é que torna verdadeira a verdade, seu esforço de aplicar as regras da democracia e da República é que cria o ambiente ótimo para que democracia e República se robusteçam. Se é virtude (e é) entender que a espécie foi projetada para funcionar em conjunto, que tudo em contrário está fadado ao fracasso e, portanto, é idiotice apoiar o que opera numa ilogicidade arbitrária, voilà: eis explicada a fala de Clarín, que certamente não se referia a nenhuma virtude de conto de fadas, alienada e etérea. Na real, etéreo é o pessimismo, que não sabe fazer escolhas baseadas na experiência.

E malandro é o otimismo: navega no fluxo e ainda se veste da fama de olhar generosamente o mar.

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