sexta-feira, 25 de junho de 2021

Todo o tempo é de poesia


"Todo o tempo é de poesia": assim um poema de António Gedeão, lindo, lindo, principia. "Desde a névoa da manhã/ à névoa do outro dia.// Desde a quentura do ventre/ à frigidez da agonia// Todo o tempo é de poesia// Entre bombas que deflagram./ Corolas que se desdobram./ Corpos que em sangue soçobram./ Vidas que a amar se consagram.// Sob a cúpula sombria/ das mãos que pedem vingança./ Sob o arco da aliança/ da celeste alegoria.// Todo o tempo é de poesia.// Desde a arrumação ao caos/ à confusão da harmonia".

Todo o tempo é de poesia.

Na saúde, na doença, plenitude e pandemia; no equinócio de primavera, na escola ou na Guerra Fria; em museu, biblioteca, carrossel, academia – são dela os momentos todos; vêm dela razão e alegria.

Todo o tempo é de poesia.

Do instante que nos desperta, em que o dia é agenda aberta e não diz como se desfia, ao horário de já ver lua e voltar da rua de alma alerta, deserta, liberta ou nua, com ou sem companhia: tempo de poesia. Nos primeiros Advils, nos últimos Greg news, nos amanheceres de sol ou ventania, na TPM ou no Leme ou no meme, na Galinha Pintadinha, no Pedro e o lobo, no Jornal da Globo, na reprise do Chacrinha, no RJ-TV ou no Hoje, ninguém foge – nem você: tempo de poesia, chefia.

Todo o tempo é de poesia.

Formaturas, videochamadas, esquinas pouco dobradas, jardins de nossas ternuras, doçuras, rebeldia: poesia. Ovos de caracóis, pesquisa de outros sóis, máscaras pintadas à mão, distribuídas na praça, distribuídas de graça, cosidas de coração por uma Dona Maria: poesia. Ânsias de vacina, saudades dilacerantes, doses que deviam ser antes, dores que deviam ser nunca, palavras que a lágrima trunca, lágrimas que nada extermina: imensidão que não cabia nem na poesia – mas que ela, a seu modo, alivia.

Todo o tempo é de poesia.

Na gastrite, na azia, na gritaria, no limite, no abraço, no laço, no terraço, na cortesia, no passo da romaria, na apatia ao mormaço – há dela, renitente, ardente ou sombria. Há dela nos olhos dos gatos, nos velhos sapatos, nos pratos do meio-dia, na filosofia e nos fatos, nos atos e em quem noticia; há dela nas cartas ridículas, no craquelar das películas, no corroer salobro de maresia, na cotovia tão Romeu e Julieta, no filme do Casseta & Planeta, nas cores de confeitaria, nos roxos de Halloween, nos contos de Grimm, no arlequim com meia fantasia, desfeito da festa, tornado à melancolia; há dela: é via que não desvia.

Se fosse flor, era todas; se baile, infinitas bodas; se cor, tudo coloria – flicts, caleidoscópio, cronópio, ourivesaria; se forma, clepsidra, ou hidra, ou medusa, ou musa, ou harpia, pena, açucena, bilhete fresco de loteria. Em ver Psicose, em ver Mamma mia!, se encher de euforia ou glicose, do que é seco ou romântico, transatlântico ou beco, impulso e atonia: lá vai ela, lá tem ela, gol de bola vadia.

Qualquer um pode. Qualquer um fazia.

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