quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Cântico dos cânticos


Não sei se têm a sensação de que a vida, ainda que em âmbitos completamente alheios a tentáculos de Zuckerberg, é a seu modo algoritmada – ou algo ritmada, cadenciada por um quintilhão de pequenas harmonias que andam atrás de nós tocando seu bumbo secreto. Há pouco foi numa livraria: eu estava espiando livros de Cecília, peguei um, o título era Cânticos, mas o nome vinha duplicado na capa dum jeito que parecia direitinhamente Cântico dos cânticos. Eis senão quando algum cliente nos arredores, que provavemente não me via e sem dúvida não via a capa que eu olhava, comentou algo com um funcionário a respeito do Cântico dos cânticos; assim, muito assim, em simultaneidade perfeita. Eu poderia dizer que fiquei boba, porém o honesto é declarar que já me sinto docemente acostumada a esses caprichos de edição.

Barrocos que me desculpem: existe também, inelutavelmente, o concerto do mundo – e músicas, como aliás não poderia deixar de ser, são prova. Quantas vezes não andamos com uma melodia sapateando na boca e ouvidos, viramos a esquina, entramos no shopping e a mesma canção (não necessariamente daquelas da moda) nos atropela no som ambiente ou nas cantarolâncias do primeiro transeunte? Dentro de meu próprio níver de casamento, quando comprava um lanchito mais esmerado, testemunhei a delicadeza de ouvir a música de nossa dança na rádio da lanchonete; e a falar em níver de casamento: no sorteio da Mega-Sena imediatamente anterior ao nosso, saíram lá direitinho os números do dia e do mês – só não digo que estaria RYKAH se tivesse jogado porque provavelmente contaria com essa exclusiva dupla de acertos. Mas foi o bastante para sacar uns sorrisos mui reconhecidos pelo prêmio simbólico.

Tenho certeza de que é vocação natural enraizada no tramar do mundo, de que é tudo organicamente assim, e apenas nos faltam olhos cotidianos de ver as pistas do enredo; uma vez que eles se escancaram, em geral não se refecham nunca – ainda que não confessem a sensibilidade e a crença. Só numa ida de minutos ao trabalho já enfio duas ou três contas no colar dos micromilagres (olho flores minúúúsculas numa portaria, comento comigo mesma que se parecem muito com aquelas dos buquês e, dez passos adiante, vejo um homem com um buquê de rosas envolvidas nas tais florinhas; penso numa loja específica que nem é das mais-mais, nem está nos arredores, e logo em seguida percebo alguém levando a sacola respectiva); imagine-se na sopa de quantas mini, midi e maxi-harmonias vistas e impercebidas nos achamos mergulhados, quantos encontros visíveis e invisíveis nos circundam nesse novelo terrestre, quantos chamados "acasos" são simplinhamente notas que pilhamos numa partitura toda autoabraçante e concertadíssima? Volta e meia se finge bobamente que não, com a ridícula vergonha de aconchegar o mistério; este porém nos acarinha desmagoado, sopra, contorna, sussurra, briseia, raramente grita, chateia-se dificilmente – antes insiste com a doçura das mães que não deixam de estar presentes em meio a raivas de crianças birrentas, teimosas de controlar o que lhes escapa. Somos isso, uns birrentos da lógica, como se a lógica se compusesse todinha da meia dúzia de areias que retemos na mão.

Ainda bem que no way, e que o próprio acorde entre títulos e teores do episódio da livraria me cantarolou uns temas para o texto que vos fala. Olhem que coincidência; eu estava justinho precisando.

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