terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Para entrega


Longe de mim incentivar quem quer que seja a se jogar no consumismo – coisa cafonérrima e perfeitamente descombinada com os nossos tempos, que finalmente começam a criar vergonha na fuça e a reparar, como se diz, que não existe planet B. É vero que estou também longíssimo de ser uma criatura ecologicamente responsável comme il faut; mas mesmo assim dou meus pulinhos: curto comprar roupa de segunda mão, livro de segunda mão, além de tentar concentrar o máximo de pedidos no mínimo de lugares pra ver se vem tudo de uma tacada só (menos embalagens, menos combustível etc.). Costumo usar tudo que tenho até o último do último segundo, reaproveito peças de décadas atrás e sou – aliás de maneira bastante indevida – muito pouco amiga de jogar coisas fora. Atitudes microscópicas e de importância mó ridícula no meio de taaaaantas irresponsabilidades, como o fato de ainda não separar o lixo (shame on me); cito essas bobagens apenas para sublinhar delicadamente a afirmação de que não, NÃO sou propensa a odes do consumo – embora, fique registrado, essa despropensão não corrobore em NADA as falas imbecis de que "âin, comunista não pode comprar smartphone". Comunista pode comprar o que quiser ("se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence"); ainda não comprei smartphone só por falta de interesse, dinheiro e saco, e se um dia comprar vai ser também só para acelerar entregas de presentes, comidices e Estante Virtual, dona de minha maior ficha corrida.

Preambulei, preambulei, no exclusivo intuito de dizer que: por mais que realmente não se seja nenhuma Imelda Marcos – googlem essa referência cringe, bebês! –, nunca se está imune a microfelicidades como "seu pagamento foi confirmado", "aqui está sua nota fiscal eletrônica", "sua encomenda já está com a transportadora", "o pacote foi entregue no endereço indicado". A mais emocionante de todas talvez more entre a penúltima e a última, em forma de "saiu para entrega". Que nirvanazinha de promessas existe em "saiu para entrega"! Nem precisamos (se é para nossa portaria que vem) nos apossar imediatamente do objeto aguardado, quase toda a graça está em pressenti-lo, em desenvolver alegres impaciências, em ser surpreendido enfim com uma caixa ou saquinho que o porteiro solícito nos passa, como se não estivéssemos 189% cientes da chegada rastreadíssima. Fomos exatinhamente nós os compradores, porém o feitio é de presente, esteja embora embrulhado – não é raro acontecer, quando livro de sebo – num papel pardo que poderia esfoliar um porco-espinho. Que importa? temos em mãos o brinquedinho novo, ele ali de verdade, e a verdade é belíssima nua; tudo que venha a revesti-la é grandemente supérfluo.

Mas nem só de esperas próprias vive nossa coleção de alegrias; acompanhar virtualmente uma entrega em casa/trabalho/evento alheio, quando o destinatário está a mil quilômetros de farejar a coisa, é satisfação igual ou ainda maiormente poderosa. Às vezes somente pelo gosto de dar um gosto, às vezes também pela dúvida ansiosa de confirmar o acerto do presente, segue-se o trajeto da compra com o zelo de quem espia todo dia a experiência do feijãozinho: botou raiz, aprumou o caule, abriu folhinha, floriu em cor-de-rosa, entabulou vagem. Vocês, não sei; eu, particularmente, namoro vez ou outra o produto escolhido para outrem, depois mesmo de encomendado, como consolação da demora (que em geral não vai além duma semana). É uma minigestação do amor de agradar, ou o aguardar de outro tipo de brinquedo novo, manifestado na terceirização do riso.

Tão frequentemente, na véspera já se tem o que ainda é preciso.

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