sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Catarses


Catarses: precisamos de catarses. Não barracos, pelo amor de Santo Onofre, e sim catarses. Precisamos de um ano com que possamos contar para isso, que não nos decepcione, porque do sonho das vacas magras (retratado na Bíblia, lembram?) já cumprimos como país uma parte bem grossa, com direito a participação especialíssima das pragas do Egito, que na história original só viriam muuuuuito depois das vaquinhas esquálidas. Chega, chega, o Brasil já pagou com mais de 600 mil vidas sua temporada desértica, já teve e está tendo os Quatro Cavaleiros do Apocalipse – mais a Besta do próprio – galopando ensandecidos por nossas planícies e especialmente planaltos, anos a fio. Hora de engordar as vacas, pular fora da escravidão, derrubar da sela os Cavaleiros. Hora do Êxodo.

2022 há de ser, com o amém de todos os anjos e santos, esse ano sacratíssimo do bota-fora: que não reste uma poeira de sandália, um grampo de cabelo, uma marca de copo, um meme, uma memória física sequer dos três ou cinco anos anteriores sobre os domínios deste que iniciamos; que nos limpemos, que nos limpemos tanto a ponto de essa travessia do Mar Vermelho nos traspassar de luz e simplesmente afogar tudo que ainda nos persegue. Que não fique nada, nada, nada – e não pelo fato de esquecermos esse exílio horroroso, afastado de toda sanidade, mas sim pela recusa terminante e definitiva de voltar a transigir mesmo que minimamente com ele. Feliz ou infelizmente não podemos esquecer; nada se aprende de olvido. Podemos, entretanto, lembrar com tanta nitidez da dor, com tanta consistência da tragédia, que ainda a menor faiscazinha de lamento pelo tempo decorrido seja abafada com um oceano. O período político que ora atravessamos, still fugindo às crueldades do faraó, há de se extinguir na última onda, há de submergir para os séculos dos séculos na tsunami de outubro. Que suma, que pereça, que sobre os restos desta época maldita nós sapateemos em alívio e liberdade, que seja referida na história apenas como Época Maldita – execrada como uma suástica, desprezada como os chicotes e correntes, símbolo eterno do que não deve sequer ser nomeado. Um vácuo de horror, meramente, ao qual se sobreviveu.

A partir de outubro (no máximo novembro), catarses: não sei se em casa ou em micareta, não sei se já sem máscara ou sob necessidade de, não sei em que situação material – só sei que CATARSES de libertação, vivas, espontâneas, como quando se extingue uma guerra, como quando retornam dela os filhos e maridos e prisioneiros. Catarses de performances, textos, teatros de rua, música soando nos becos, violinos cantando das janelas, sambas nos terraços, chuvas de pétalas nos centros, rodadas gratuitas nos bares, vizinhos gritando Aquaaaariuuuuus!, repórteres valsando nas entrevistas, festivais de adoções nos canis e gatis, grafites gigantes fazendo a festa dos muros, bolos quilométricos sendo partilhados nos bairros: catarses loucas de felicidade, loucas duma leveza legítima a que há tempo de mais ninguém se atreve.

2022: você nos deve.

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