terça-feira, 14 de dezembro de 2021

A nova nudez


Achei fofo quando um colega, que também achou fofo, narrou o episodinho testemunhado entre duas crianças do sexto ano: a menina tirou a máscara para finalmente mostrar o rosto ao menino, que nunca o tinha visto inteiro, porém ele mesmo (talvez intimidado pela lindura da amiguinha) ficou com vergonha de mostrar-se por sua vez. É fofo e triste, verdade, já que nossa temporada obrigatória na mascaralândia provavelmente ajudou a sufocar ainda mais umas autoestimas infantis que se penduraram no conforto do incógnito, mas cedo ou tarde precisarão se reacostumar a despir-se socialmente – e mal puderam construir repertório para lidar com essa "nova" prontidão. Como poderiam? Para bacuris de 11, 12 anos, pouco menos de um quinto da vida transcorreu em regime de pandemia, e a necessidade de cobrir seus traços mais individuais calhou direitinho com o momento biológico em que esses traços lhes ficam menos familiares e controláveis. Claro que não faço, Jesus amado! nenhum libelo em desfavor das máscaras (aliás sou a primeira a encher o saco dos alunos para ajeitarem as cujas), faço apenas uma constatação: circunstâncias desenharam o minifenômeno doutro tipo de nudez, ponto. Cabe aos adultos agudizar o olhar a fim de que, no universo delicadíssimo da infançolescência, a treta se desenrole o menos traumaticamente possível.

Nem são só os mais novinhos; alunos um tanto mais velhos também tratam com o mais absoluto encantamento qualquer través de nossa imagem que conseguem pilhar, chegam às vezes a pedir que os professores mostremos o rosto – e, se nos flagram num instante desmascarado, um alumbramento bandeiriano, um susto. Quaaaase equivale àquela curiosidade moleque de espiar debaixo da saia, investigar pelo buraco da fechadura, ver fotos de revista; olhem que não me espantava nada se os guris de hoje dessem de folhear álbuns do mesmo jeito que a meninada pré-pandemia averiguava Playboys. Por andarmos justamente distraídos com outros lados mais pedregosos da situação, escapou de nossos cuidados essa espécie de neoerotismo inocente em torno de nariz, boca, queixo, bochechas; fugiu de nossas vistas – nós que nascemos e crescemos vendo caras completas, plenas e nuas – essa fetichização que se tornaria representativa duma geração de formas humanas interditas, recalcadas. É entretanto natural, criam-se interesses fáceis em tudo que se oculta, e se hoje temos umA pata da gazela entre os clássicos de Alencar, por exemplo, ou se temos "Uns braços" entre os de Machado, claramente é porque membros femininos não andavam nus e disponíveis nos corredores do século XIX; um dia haveremos de ter (se já não temos) obra equivalente com o vislumbre duma covinha, dum furinho no queixo – eu quase juro.

Que continuemos devidamente medidas-de-seguranços, todos nós, com nossos disfarces heroicos de engabelar vírus; mas que não negligenciemos o inédito das dificuldades de quem está entrando na luta agora. Há identidades jovens, engatinhantes, pendentes que ainda precisarão reaprender a lógica de deixar de ser secretas.

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