sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

De amor e confiança

George MacDonald, escritor escocês nascido em 10 de dezembro de 1824 – um dos primeirões do gênero fantasia e inspirador de bambas como Lewis Carroll, J. R. R. Tolkien, Mark Twain e C. S. Lewis –, tem uma frase com que não posso deixar de concordar: "To be trusted is a greater compliment than to be loved" (algo como: "Ser [considerado] confiável é um elogio maior do que ser amado"). Veja, não se fala aqui em termos do que se prefere ou do que se tem como fonte principal de felicidade; compreendo que muitos corações ressentidos dos dias e lábios secos pensassem facilmente em trocar sua credibilidade por um intenso, ainda que breve amor. A questão, no entanto, gira em torno do que se pode conceder ao outro como prova maior de consideração e e-lo-gi-o – e nisso o depósito da confiança ganha disparado, gostem ou não gostem as íntimas esperanças que se guardam no porão. A entrega duma vida ou dum segredo é voluntária e, porque voluntária, tende a definitiva: não se retira uma confiança por distância, capricho, flutuações de desejo; o amor, por sua vez, não passa necessariamente pela vontade (não raro foge dela, aliás) nem está sempre sujeito ao carimbo da admiração, ao menos para início de conversa. Ainda que só a admiração possa manter o amor, os primeiros movimentos do cujo podem brotar de tudo que é fonte menos lisonjeira, inclusive pena – coisa bastante incompatível com o crédito sincero que só se partilha com base no senso de igualdade.

"Oxe, mas tem cabra que confia plenamente em seus paus-mandados, seus jagunços, e nem por isso os vê como iguais ou os admira." Não creio seja simples assim. Nuns casos tais, acho que das duas uma: ou o cabra só aparentemente confia em seus cúmplices usuais, mas na realidade tem uma eterna carta na manga para utilizar na eventualidade duma traição; ou o sujeito parece pensar e viver em voz alta na frente de seus supostos homens de confiança porque sequer os vê como homens – seu narcisismo descompensado coisifica o outro e acabou-se. Nesse último cenário não se trata de confiança propriamente dita, trata-se de gente vendo gente como um puxadinho seu, uma extensão sua, incapaz de cair com um centímetro de pensamento para longe de seu amo e senhor. A prova de que narcisista não é prova de nada, anyway, está no fato de essa raça ser tão oca para o amor quanto para a confiança: dar qualquer exemplo usando um povo que porta 34 graus de miopia humana simplesmente não vale – não difere muito de teorizar sobre a empatia a partir do comportamento de exceção dos psicopatas.

No rumo esperado das ações das gentes, deposita-se confiança por escolha e reflexão, em consequência de se ter acompanhado a (ou tido sólidas referências da) trajetória de perícia, aptidão, lealdade do ser "contratado" por nossa estima. Já o amor é descuidado com merecimentos e currículos, dá-se sem burocracias, incondicional como um saquinho de Cosme de Damião; cede-se, às vezes, sem que a própria confiança entre no pacote, e nessa situação (caso aquele que ama seja prático e inteligente) sem que a própria criatura amada venha mesmo a se saber amada. Ou seja: receber a confiança de outrem diz muito (bem) sobre quem a recebe; receber amor diz muito mais sobre quem o dá. Não é ser amado que é o elogio, mas amar mesmo, visto que a natureza da incondicionalidade faz tombar a luz não sobre o beneficiado e sim sobre o beneficiador.

Ser acolhido como crível é trabalho labutado duma vida; piscar e acolher uma vida é uma qualquer terça-feira pro amor.

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