sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

O discurso é um parto


O celebríssimo Jean-Luc Godard, que aniversariou de 91 aninhos neste 3 de dezembro, bem já disse que "não é de onde você tira as coisas – é aonde você as leva" (ou qualquer algo neste sentido que não se tenha perdido na dança entre francês, inglês e português). Nunca curti a obra do cineasta, por descaso totalmente meu, mas da frase fiquei fã; "é sobre isso", como repetem que nem doidos os alunos: importa pouquíssimo de onde brotou o mote ou se ele é batidíssimo. Importa mesmo a narrativa ou o poesiamento da ideia, a construção em si; o material, nem tanto (em se falando de arte, claro, não de pontes ou prédios, que desabariam fácil no coco de quem emitisse tal disparate de engenharia). Arte é o eterno mistério da multiplicação de recursos.

Um sujeito que fez besteira, um burguesinho com ciúmes, uma garotinha que quer ler um livro, uma mulher entediada no casamento, um homem tentando voltar pra casa: em si, banalidades de esquina. Mas eis que entra gente com capacidade de tempero e as pequenezas do cotídi viram Crime e castigo, Dom Casmurro, Felicidade clandestina, Madame Bovary, A odisseia. Milagre? artistas em geral não trabalham com; bastantemente ao contrário, passam semanas, meses, eventuais décadas moldando e remoldando a matéria-prima, cortando e editando, esfriando e aquecendo, colorindo mais uma parte, dessaturando uma outra, espichando o troço na marra com meia dúzia de adjetivos recentes ou fervendo de novo, pra rancar o excesso involuntário de sal. Finais mudam porque alguém torce o nariz para as primeiras provas, nomes se alteram porque esse outro aí é mais parecido com o da tia-avó merecedora de homenagens, personagens que não morriam são sacrificados apesar da simpatia, capítulos se rearrumam, ficam órfãos de determinados trechos, dão à luz outros e voilà – nasce algo que parece sempre ter sido, e que no entanto só foi porque alguém puxou a besta à força para mui relativamente longe de sua cretinice original. O discurso é um parto de anos, anos; só ele pode fazer Bentinho sair diferente de Otelo, ou Emma Bovary de Anna Karenina, ou Oliver Twist de Harry Potter. Narrar é necessariamente individualizar, a golpes de tempo, tudo com que nascemos de profundamente coletivo.

Coletiva, e quase que por isso banal, é cada manifestaçãozinha do querer, do fazer, do temer e do observar; ao mesmo tempo, o teor (semi)universal providencia que nenhuma banalidade seja elegível para o desprezo. Barbear-se pode render romance; ficar pasmado no quarto, outro; ter uma vida miserenta sem qualquer hora estelar, um terceiro; sonhar com casamento, milhares – basta que o empenho no dizer seja absurdamente superior a todo receio de estar dizendo, e seja de tamanho similar ao respeito abissal pelo que é dito. Ou antes: por como é dito. Pode-se até rejeitar, no íntimo, a própria matéria, mas jamais a própria construção sobre ela; o passaporte de existir torna as vozes sagradas por promoção automática.

E é responsabilidade da técnica resgatar a prática.

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