quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Eu lhes desejo a esperança de esquina


Não há alternativa. Não há opção. Não há substituto. A esperança é doce e duramente compulsória, feito a democracia – que (como se diz) é o pior regime, fora todos os outros. Para que não ter esperança? se a ausência completa dessa vitamina mental só faz jogar-nos todos no sofá, desarmados e imperigosos? Esperança é o café com leite, o feijão com arroz, o pão nosso de cada dia: dai-nos, Senhor, esperança hoje. E depois de hoje.

Não há propriamente vantagem na esperança, sendo ela um default, como o oxigênio; há, sim, profunda desvantagem em não tê-la. Esperança é o sangue que corre porque deve correr, o coração que bate porque não lhe ocorre nada melhor que bater, a Terra que gira porque explodiríamos todos se não girasse; ela existe, ela é necessária e comum como a glicose, ponto pacífico. Não ter esperança é falsear o pé no vazio ou ser engolido em areia movediça de filme B; mantê-la é pisar o chão constante, possível, que desde o início deveria estar lá.

E, pois, eu lhes desejo esperança como lhes desejo ar e comida, chuva e estio, piso e teto, água e pulsação. Eu lhes desejo a esperança de esquina, a que esbarra com a gente entre prateleiras de sabão em pó no mercado, a que nos cumprimenta na farmácia; desejo a esperança óbvia, sólida, ululante. A que não teria como não ser. A que não sobe em torres de castelo nem sofre por antecedência. A que vai vendo, vai fazendo, vai arranjando, resiliente feito formiga operária, concentrada sobretudo em continuar vendo/fazendo e sem tempo ou (des)ânimo para dúvidas. A esperança despossuída de romantismos de nascença, embora com entrada USB para vir a adotá-los. A esperança prête-à-porter, fresca, de malha – certinha para enfiar pelo pescoço e sair usando, em vez de pegar mofo e amarelo na gaveta de querências basicamente impossíveis.

Não sei se é essa a "esperança de óculos" de que falou Elis, mas é a que lhes desejo: uma esperança renhida à força de ser serena, leitora, filósofa, observadora, sabedora de que os sinais se encaminham para a melhora e, portanto, não é hora de deserções. Uma esperança que é continuação para além de ser espera, uma que permanece no posto, uma que tem por grande mérito e heroísmo ser mui somente aquela que não abandona.

Não desejo a ninguém uma esperança cafona.

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