domingo, 12 de dezembro de 2021

Elas por ela


Odeio muitomente admitir, já que adoro o texto de Lícia Manzo e tenho suas novelas anteriores como duas de minhas favoritas ever – mas Um lugar ao sol é uma novela machista. Bem machista, inclusive. Até entendo, como o Fábio observou em papo nosso, que a autora use as personagens femininas como as maiores andadoras de história, e que histórias basicamente andem na corcova de problemas; o A = C, nesse caso, fica sendo o fato de as mulheres, por mais interessantes como motrizes, serem também mais "problemáticas". Elas foram pensadas para ser mesmo o eixo, concordo que são um eixo melhor, vá lá. Acontece, entretanto, que junto aos EXCESSIVOS problemas da banda feminina há a gritante perfeição masculina encarnada em quatro personagens: Santiago, o empresário culto, justo, fofo, generoso, tudíssimo de bom – o que ainda esboça perigosamente a elite brasileira como tudo aquilo que ela NÃO é; Ravi, a doçura, lealdade e honestidade em forma de gente; Mateus, idem, ibidem; e Felipe, o intelectual novinho "de alma antiga", amante de MPB clássica e incondicionalmente apaixonado por uma mulher bem mais velha. A par dessa belezura toda, que dá para um pódio inteiro e sobra, quantos espécimes de meu gênero existem na trama que merecem o pedestal de Sangue Bom do Rolê? Lara chega perto, verdade: é linda, lúcida, inteligente, batalhadora, esperta, doce, corajosa; mas o detalhe de ser representada como uma pessoa (com toda a razão, diga-se) obcecada pela morte do ex-noivo, e consequentemente um pouco negligente com o marido TDB Mateus e a enteada fofa, acaba enfraquecendo o retrato – algo que seria perfeitamente aceitável se fosse caso de apenas humanizá-la, porém a deixa em injustíssima desvantagem quando comparada a tantos bonzões quase sobre-humanos. Ou seja: paira a familiar ideia de que uma mulher, por mais incrível que seja, nunca será o suficiente.

Com exceção de Lara e da avó de Felipe, Ana Virgínia – carinhosa, arejada e moderna, mas ainda assim um tanto hesitante ao lidar com a filha Júlia, ex-adicta em recuperação que acusa a mãe de demolir sua autoestima –, todas as gajas do enredo são pintadas como um poço até aqui de destrambelhamento, drama e chatice. Bárbara é insegura, mimada, arrogante, emocionalmente dependente, além de nunca ter se encontrado na profissão e de haver se apropriado dos textos duma colega de curso; sua irmã Nicole se sabota permanentemente em termos de autocuidado, topa se envolver com boys lixo, é inconveniente, sarcástica, amarga e boquirrota; Cecília, a sobrinha de ambas, o que tem de belíssima tem de enjoadíssima, especialmente no que diz respeito à mãe – com quem costuma ser mil vezes mais dura e ressentida do que soaria razoável; a engenheira Ruth é a amante corrupta do vilão Túlio; Ilana é retratada como um trator nos negócios, exageradamente prática e pouco talhada para compreender os anseios mais artísticos do marido Breno; a irmã de Breno, Lucília, é uma passivo-agressiva com síndrome de mártir; Maria Fernanda, personagem-pontinha que teve um caso com Renato, saiu como oportunista que tentou dar (a posteriori) o golpe da barriga; Noca é um amor de vovó até a página 12, já que se mostra também turrona e inconsequente num zás; Joy é uma descabeçada capaz de pagar uma creche porcaria para seu bebê a fim de, com o troco, injetar substâncias duvidosas para queimar a barriga pós-gravidez (sem falar que seu relacionamento com Ravi sempre foi, como dizer? remunerado); Elenice, mãe adotiva de Renato, é a maior trambiqueira de todas as trambiqueiras, além de fria o bastante para acolher um bebê gêmeo e abandonar o outro. Tá pouco? pois a primeira esposa de Santiago se encontra com demência, e da segunda sabemos que era bipolar (e suicida?); mesmo seu atual interesse romântico, Érica, é constantemente julgada e pressionada pelo fato de ser mãe solo – a um só tempo sua irmã e cunhado a consideram "nariz empinado" demais para sua própria realidade e Bárbara, filha do possível crush, a vê como arrivista vulgar. Sim, apenas o ricãozão parece ser o bendito fruto imaculado no ultracomplexo universo mulheril que o cerca. Pobrezinho.

Acredito que a maior imperdoabilidade da trama até agora, porém, tenha sido o modo trivial e migalhinho como foi tratado o ESTUPRO da personagem Cecília. Injusta mas compreensivelmente chateada com a mãe, ao descobrir o interesse de Felipe pela modelo, a adolescente transformou-se por um dia – na realidade, por uma noite – de menina em femme fatale, produzindo-se com toda a sensualidade e atravessando todos os limites físicos na bebida. Isso não configuraria em si um problema, se no contexto da festa a moça não tivesse sido estuprada por um desconhecido, em cena agoniante. Triplamente agoniante: pela cena itself, por ter resvalado facilimamente para o também-ela-estava-procurando e pela falta TOTAL de consequências do crime hediondo, que não foi identificado no hospital para o qual levaram a menina – Cecília somente tomou soro na veia, por causa do excesso de álcool – e aparentemente não a abalou em NADA. Nenhum pesadelo, nenhum flash, nenhuma lembrança, NADA: a adolescente segue pleníssima, bela, sorridente, às turras com Rebeca mas com ZÍROU sofrimento real por algo que, segundo qualquer lógica, teria demolido uma mulher por dentro. A não ser que a coisa retorne manifestada em trauma (des)bloqueado, não há justificativa no UNIVERSO para tamanho disparate de insensibilidade.

Mas não tem méritos a trama de Lícia Manzo? Tem muitos; os enredares e desenredares são (em geral) muito críveis e sólidos, e os diálogos continuam, como é praxe em suas novelas, no posto de joias da coroa. Destaco sobretudíssimo as falas e a atuação de Andréa Beltrão, que com sua Rebeca pululante de humanidade – e verossimilhança deliciosa – tem sido a razão maior de pôr ou permanecer na Globo após o último boa-noite do Jotaene. Num elenco estelar e afinadaço, nenhuma aposta foi tão radicalmente chique.

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