quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Abstrato pelo concreto


"Para entender o coração e a mente de uma pessoa, não olhe para o que ela já conseguiu, mas para o que ela aspira." Disse-o Khalil Gibran, e corroboro: o que alguém já conseguiu, sobretudo em termos materiais, esbarra sempre no ponderável das economias humanas (cruéis, tão cruéis) e no imponderável da roleta de sorte; onde se nasceu, onde se cresceu, com quem e como se viveu determinam muitíssimo mais o que se realmente atinge do que qualquer esforço meramente individual  e sempre davi-golíaco – pode determinar. O que é materializável em tijolo e documento, em cimento e diploma, em trabalho publicado ou imóvel quitado, em prêmio obtido ou tese defendida, em resposta científica encontrada ou loja espalhada em império – isso é inelutavelmente atado às normas do mundo, às mil amarguices circunstanciais que algemam ou libertam braços e pernas, que franqueiam aqueluns crachás e confianças, que ao contrário barram aqueloutros, que posicionam uns na raia com 2.837 obstáculos por metro e acomodam outros num trem-bala direcionado à área VIP. Ter conseguido usualmente diz mais sobre o mundo para nós do que sobre nós para o danado.

Aspirar, embora fluido, é maneira muito mais sólida de alguém se ver representado.

Querer é íntimo, é livre, é próprio, é gratuito; dá pra cometer querência no ônibus, indo pro trabalho que se pôde obter e que se detesta. Dá pra querer grande e profundamente mesmo longe demais da meta, e querer durante o banho de 5 minutos espremido entre dois expedientes, e querer sem precedente e sem padrinho e sem grana. Claro: não se pode ignorar que toneladas de realidade inglória, fome, violência e azedumes afins asfixiam também as condições do desejar, tanto quanto as do obter; não se pode fingir que gente desnutrida de todo alimento físico, mental, emocional há de se criar em pé de igualdade no sonho com gente que nunca soube o que fosse a prostração do vazio, o cercadinho da mera sobrevivência. Não, mesmo na aspiração não existe conformidade entre as vidas – nosso abstrato está algemado ao concreto e é por intermédio dele que recebe (ou não recebe) a mínima glicose na veia. Ainda assim, se resta um domínio em que é mais acessível ser rei e rainha no que há de humanamente essencial, esse é o reino dos idealizares, ou ao menos dos sentires com legitimidade, embora sem plano: o que se DESEJARIA fazer se se pudesse nos estilinga para o voo real; o que a realidade nos permitiu fazer antes de destruir-nos somente nos engaiola num epitáfio.

"Ah" (por exemplo), "Fulano Albuquerque Peixoto Maia montou uma rede industrial poderosíssima que emprega milhares, enquanto o fracassado do primo Beltrano fez o quê? construiu nada, emenda um projeto falido no outro, de vez em quando se afunda no vício e ainda depende, pro tratamento, do dinheiro da família que ele só gasta e não ganha." Pode ser; isso é ao menos o que vemos de fora. Mas e a parte em que o Patrão Albuquerque Peixoto Maia se bilionarizou porque herdou um esquemaço do pai, ou foi cortando benefícios e mais benefícios dos colaboradores que terceirizou ao máximo, além de não só não soltar incentivo para a qualificação dos funcionários como demitir vários superqualificados com 30 anos de casa (afinal, gente mais "moderna e aberta a desafios" aceita muito mais e ganha muito menos)? E a parte em que o primo Beltrano Maia, aparente desgosto dos seus, entrou em depressão profunda durante seu voluntariado nos Médicos sem Fronteiras, voltou da experiência dependente de calmantes e remédios para dormir e imergiu ainda mais quando, ao tentar implementar uma política humanística nas empresas familiares, foi sistematicamente rechaçado como o "louco sonhador viciado e inútil"? O que DE FATO sabemos sobre os que triunfam justamente por estarem perigosa e comprometedoramente alinhados com todos os arrasa-quarteirões do planeta – e o que sabemos, por outro lado, sobre os que falham exatamente porque seus quereres são coletivos em excesso, desagradáveis aos poderes, incômodos ao Jabba The Hut pesado e nojento do status quo? E isso considerando que nosso Beltrano, aqui inventadinho, tenha tido alicerces para estruturar suas asas imaginárias. O quão menos sabemos ainda sobre os que jamais, nem de perto os tiveram?

O que sabemos? – que fazer para si é quase nada, que aspirar para o não-si é praticamente tudo; é o que deveríamos tatuar dentro da consciência, no mínimo. O mínimo para um planeta em que boa parte dos bem-sucedidos carrega orgulhosa uma cruz no (exterior do) peito, sem pretensão alguma de ser ou compreender quem nela morreria.

Enfim, a hipocrisia.

Nenhum comentário: