quarta-feira, 8 de julho de 2020

Melhor que você

Corpo De Conhecimento - Foto gratuita no Pixabay

Ninguém duvida da suprema, absurda genialidade de Leonardo da Vinci, uma das criaturas mais transbordantes que já pisaram este planetinha. O velho Léo tinha a palpitação interminável da curiosidade que constrói os gênios, e, como sabemos, tudo investigava, estudava, catucava, escarafunchava, imaginava, projetava, bebendo sôfrego desde a pintura até a matemática, desde a engenharia até a música. Um tamanho tráfego mental só fluiria macio na base de um truque que já bombava (pelo menos entre os cadernos de Da Vinci) nos idos de 1490, e hoje continua alive and well: fazer listas. Se bem que "listas" fazemos nós, primatas involuídos; tio Léo meteu logo 13 mil páginas de anotações e pensamentos e questões e afazeres, no meio dos quais havia um quaquilhão de itens como os seguintes: "pedir ao Messer Fazio [professor de Medicina e Direito em Pavia] para ensinar sobre a proporção"; "pedir ao Frade Brera [no Mosteiro Beneditino de Milão] para mostrar De Ponderibus [um texto medieval sobre mecânica]"; "perguntar ao Maestro Antonio como os morteiros estão posicionados nos baluartes de dia ou de noite"; "encontrar um mestre da hidráulica e pedir-lhe que ensine como consertar uma eclusa, um canal e um moinho da maneira lombarda" – e por aí vai. Ou seja: sendo a sumidade que era (talvez sendo a sumidade que era por causa disso), Da Vinci aparentemente passava boa parte das horas procurando e consultando os mais diversos especialistas. Queria aprender, aprender, aprender, e ia com sede e modéstia a variados potes de conhecimentos variados, sem se importar minimamente em sair dando pinta de que – oh, choque! – não sabia tudo. 

Pois é. Melhor que eu. Melhor que você. Ou mais precisamente: ao assumir diariamente não ser melhor que ninguém, mestre Léo diariamente se engajava em ser melhor que ele mesmo. 

Não há coincidência em que espantos de inteligência como Da Vinci e Sócrates operassem em modo "só sei que nada sei" e ficassem chateando os demais com mais perguntas do que afirmações. Gente brilhante (já o disseram trocentas pesquisas) tem uma cacetalhada de dúvidas e uma proporção bem menor de certezas, uma vez que carrega luz suficiente para identificar as próprias lacunas. Gente deslumiada por dentro, no entanto, tende a se contentar com os poucos raios já entrados, não se interessa em abrir novos alumiódromos e vive, consequentemente, tropeçando ou desabando nos buracos internos, esbarrando nas incoerências que moram na penumbra até o ponto do eterno hematoma. Gente brilhante tem autoestima serena, exerce o respeito e a humildade da escuta, aproveita toda referência nem que seja pelo contraexemplo, checa e recheca informações, questiona-se, corrige-se, desculpa-se, não sente a integridade ameaçada por falhas eventuais porque escorregões acontecem e restou o benefício da lição. Gente (ainda) deslumiada tem ego minado, explosivo, para disfarçar a autoestima molenga; bastam-lhe as superfícies porcamente iluminadas, as cascas, os títulos, as primeiras e ligeiras impressões, as aparências, sem as profundidades que dão raiz e podem resultar perigosas. 

Gente autenticamente conhecedora (também de si: incluo aqui, com força, a chamada inteligência emocional) tem ideia mais fiel do tamanhão de seu desconhecimento, sabe medir suas insignificâncias; é, portanto, avessa a esnobismos e carteiradas, não precisa expor posses e diplomas como band-aid para suas feridas, que andam descobertas e estão em tratamento permanente. Gente perdida, inconsciente e em fuga dos próprios eus tenta se garantir na cara, na Caras, na foto, no berro, na joia, no Rolex, no carro importado, na autopropaganda, na pavonice do currículo, no selo de cidadão de bem e pilar da sociedade, no porcelanato da fachada. Para gente que já está sendo, basta continuar sendo. Para gente que ainda não foi, a saída mais rápida e ineficaz é parecer. 

Saibamos que não sabemos, leitor amado; vivamos não descontentes mas insatisfeitos, insaciados do aprendido; vivamos não sequiosos de mais, mas sequiosos de nós – da ilustração íntima, da clareza de visão, do alumiamento artístico, científico, (inter)pessoal. Pior que você seja o você de ontem, e outros CPFs não sejam admitidos na competição.

2 comentários:

Celso Trancoso Clemente disse...

"A Beleza deve fazer apelo aos sentidos, deve oferecer deleite imediato, deve impressionar-nos ou imiscuir-se em nós sem qualquer esforço de nossa parte. Tomem Leonardo da Vinci; tomem Mozart; estes são os grandes artistas"
De Claude Debussy em "As Teorias de Claude Debussy, Músico Francês", de Leon Vallas.

[Achei isto hoje, procurando outro elogio ao meu amado Mozart, e disse à sua amiga, "lembrei da Fernandinha"]. Eu já sigo, desde que li este livro ("Mozartiana....", de 1991, no propósito de ouvir Mozart todos os dias da minha vida, e ele continua me surpreendendo. Agora, depois do Debussy, quem sabe eu não dê uma olhada em Leonardo. Corro o risco me tornar muito rico em beleza.

Unknown disse...

Que lindo! Amo a beleza demais! Precisamos estar muito atentos para não desperdiçarmos esses Mozarts e Leonardos que andam por aí entre nós; como já deve ter havido tantos que perdemos por não vê-los a tempo! Temos de salvá-los pelo bem deles e o nosso próprio. 💗 💗 💗