segunda-feira, 13 de julho de 2020

Precisa-se de gente

Abraço coletivo 27092012 | Marcelo Freixo | Flickr

Uma das falas mais definitivas e comoventes a respeito da relação com Deus me chegou por meio de um dos verbetes do Dicionário de humor infantil, joiazinha em que Pedro Bloch reúne ditos de seus minipacientes e amigos sobre os assuntos mais vários. Apesar do título, nem todas as linhas da obra são humorísticas; algumas resvalam para o pungente, a complexidade mais terna e filosófica, como o trecho que docemente me chocou: "Eu não rezo para pedir nada a Deus. Só rezo pra perguntar se ele precisa de mim pra alguma coisa". 

Desconheço a idade da autora ou autor da pérola, porém duvido seriamente de que muitos adultos já tenham ido tão além com tão poucos fonemas. Não é certíssimo? Se acaso estamos na condição de quem respira bom ar, tem residência segura, prato completo na mesa, corpo são, gente amada igualmente sã – o que há de fato a pedir por nós, para nós? Que assim nos mantenhamos, é certo, mas que nos mantenhamos assim pela exata possibilidade de revertermos para melhores focos toda a preocupação que não precisamos ter conosco. Todo o sossego que nos abençoa, se não vira tempo disponível para nos tornar úteis, o que nos torna? Peças polidas, brilhantes, tratadas, azeitadas para uso mas encostadas num canto; plantações cuidadas e robustas que mostram esterilidade de fruto, ou que dão fruto apodrecente sem consumo; cadernos novinhos e cheirosos para a escrita, de papel entretanto desperdiçado e mudo. Gente prêt-à-porter embolorada no armário, gente treinada que fica no banco dando ferrugem.

Não há desabono nem "culpa" se não temos ou tivemos uma jornada sacrificada, se não é ou foi necessário que nossas mãos sangrassem na feitura do caminho; há desabono, no entanto, em estarmos cientes de que o que nos chegou como bênção (ou como parte de um espólio social muitíssimo mal dividido) é idêntico ao que não chegou para muitos – e, ainda assim, continuarmos estatelados em berço esplêndido, sem colocarmos à disposição nossos braços mais livres de peso. A verdade que diária e universalmente se esfrega na nossa cara, berrando sem disfarces nos jornais e nas ruas, é: SEMPRE se precisa da gente para alguma coisa. Negá-lo é ser irresponsável. Precisa-se de gente para espalhar informações reais e rasgar as falsas, precisa-se de gente para reivindicar direitos negligenciados, precisa-se de gente para conhecer e ensinar história, para doar sangue, para fazer mutirão, para mandar e-mail enchendo o saco de parlamentares, para militar nas avenidas, para militar nas redes sociais, para educar politicamente os filhos, para viralizar notícias boas, para questionar decretos absurdos, para exigir transparência, para conscientizar e apoiar explorados, para zelar pela integridade das crianças. Precisa-se de gente para a cesta básica, o boleto impossível, o animal maltratado, o atendimento psicológico, o empréstimo urgente, a escuta amiga, o perdão crucial, o abraço curativo, o abaixo-assinado, a festa surpresa. Precisa-se de gente para a alma, a aula, a medula, a campanha, a companhia; precisa-se de gente na cozinha, no trânsito, no consultório, no laboratório, na oficina, na biblioteca, na universidade, no salão, no abrigo. Precisa-se de gente em tudo, precisa-se da gente em algum lugar no mínimo – fazendo por outros o que quer que tenhamos a chance de não fazer por nós. 

Deus pode não carecer de nós em seu benefício, mas nos emprega em benefício dos que ama. Há que lembrarmos que podemos ser o fragmento de Deus que alguns já viram mais de perto.

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