quarta-feira, 29 de julho de 2020

Deixem-me quieta

Figura Da Boneca, Figura, Menina, Sentar Se, Descanso

Que lindos os versos de Conceição Evaristo (a poeta que DEVERIA estar na ABL) ao dizerem: "Quando meus pés/ abrandarem na marcha,/ por favor,/ não me forcem./ Caminhar para quê?/ Deixem-me quedar,/ deixem-me quieta,/ na aparente inércia./ Nem todo viandante/ anda estradas,/ há mundos submersos,/ que só o silêncio/ da poesia penetra". Identifico-me tanto que nem sei. Sou lenta nas coisas por motivos de borboleteamento mental crônico – e, mesmo ao parecer eventualmente ligeira, só engato a ligeira em regime de desespero e não de feitio. Faço todo o necessário, todo, mas não me enviem em mil maratonas e projetos; vou cumpri-los realmente inteiros, e talvez bem ou de jeito razoável – porém aos trancos certamente, e abstrata de vontade sem dúvida. Digo que vou e voo. Parece que estou e destoo. Normalmente não estou ali, se for obrigação estar, e me evolo por toda fresta que abrirem ou me deixarem. Verdade que isso não tem sido raro no mundo, mas não sou arredia nem distraída por questões de smartphone, que nem tenho; a tela é por dentro. Como também diz o amado Manoel de Barros, "prezo a velocidade/ das tartarugas mais que a dos mísseis", e o planeta tem ido em andar frenético de míssil doido, desatento porque não foca, não porque contempla. Embora eu não exatamente contemple: sou mais de apanhar desperdícios (acho que nada supera essa imagem de Manoel). Apanhando-os tanto, acabo tecendo-os numa grande colcha de desperdício temporal, numa grande coleção de nadas perfeitamente infeitos.

Sei que é hora de botar o almoço, de lavar a roupa, de arrumar a bolsa, de corrigir o trabalho, eu sei, já vou – mas, pela duração variável de um bocado, deixem-me quieta. Deem-me o mínimo possível de agendamentos, não me matriculem em novos compromissos, não me tragam necessidades saídas do forno. As coisas emergenciais se irão fazendo em sua cadência, conforme a carência, conforme a demanda; ajeita-se tudo, não há de faltar nadinha, e principalmente não pode faltar o sossego cerebral, o espaço de recreação e recriação do pensamento. Não, não fico nunca sem ter o que fazer, não existe vazio porque não existe ausência, está tudo constantemente preenchido de agires e não agires, como a maior parte dos ambientes fica preenchida do ar que não vemos. Pareço estar desocupada? Deixem-me quieta. O ócio é quase que total mentira, a cabeça arde em fogo eterno, "tem sangue eterno a asa ritmada" (terceira poeta, eita!: isto é Cecília). E nem o fazer, quando visível, precisa ser o da obrigação: se estou lendo, zapeando a TV, palavra-cruzadeando, não há inércia – há estímulos, estímulos. Referências. Repertórios. Sinapses. Não tenho necessidade alguma de, para pensar, estar em modo "ganhadora de salário" ou "melhoradora de currículo"; se ando operando em outra vibe, por favor, não me forcem.

Não, não quero acompanhar toooooda a tecnologia; ela é que é feita para mim, ela que me acompanhe. Não, não quero filhos, não importa a quantidade de amigas que os tiveram; no estilo "não perturbe" em que passeio, sou talvez a pessoa menos indicada da Via Láctea para lidar com urgências infantis. Não, não quero mestrado nem as demais continuações acadêmicas; seria muitíssimo mais custoso do que benéfico empenhar tempo, alma, coração no que não me enche os dois últimos e me roubaria o primeiro. Não quero criar mais solicitações externas porque todos têm, porque todos fazem, porque todos gostam, porque todos esperam, porque todos sonham; nem todo viandante anda estradas, ao menos não as mesmas – seria engarrafamento monstro –, e o mundo em si próprio é já um Mefistófeles talentosíssimo, voraz. Há sempre a militância a ser feita, a realidade a ser acompanhada e digerida, a alternativa a ser pensada, a casa a ser repensada, a ajuda a ser providenciada, a campanha a ser divulgada, o filme a ser visto, o romance a ser lido, o amigo a ser ouvido, a viagem a ser projetada, o amor a ser exercido. Como pode haver sequer a sombra da inércia atiçando a culpa humana, se existe uma infinitude de mundos (às vezes nem tão) submersos para além das estradas mais badaladas, "obrigatórias"? Abrandar a marcha, estar ou parecer em situação qualquer de quietude, é ainda caminhar léguas se o cérebro prossegue reservadamente em combustão. 

Me viram com ares de "fechada para balanço"? Deixem-me quieta. A cabeça não está parada, está parida, trabalhando em atualizações do sistema. Algumas informações podem ser perdidas durante o processo, mas é quase certo que pululem links novos na página principal.

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