quinta-feira, 16 de julho de 2020

Tinha uma pedra no meio do caminho

Estátua de escravagista é substituída por uma de manifestante ...

Na madrugada dessa quarta-feira, em Bristol (Reino Unido), a equipe do artista Marc Quinn instalou operação-secretamente a estátua Um Rompante de Poder, feita à imagem e semelhança da ativista Jen Reid. A nova escultura – temporária, infelizmente, já que os instaladores não tinham permissão oficial para colocá-la – retrata uma manifestante negra erguendo o punho com decisão, e foi posta no mesmíssimo lugar onde ficava a estátua que homenageava Edward Colston, um infeliz que enricou comercializando pessoas escravizadas no século XVII. Mês passado, um grupo que protestava contra o racismo derrubou Colston do pedestal e o "afogou" devidamente (espécie de justiça tardiiiiia, mas ao menos simbólica para os milhares arrancados por ele de suas terras africanas e mortos na travessia do mar – ou depois). 

Se aprovo a derrubada e a substituição? Completamente. Apaixonadamente. Por mim despencariam absolutamente todas as representações públicas de colonizadores, exploradores, escravagistas em cada parte do mundo, e só não defendo que sejam destruídas por deferência aos escultores que as moldaram; houve artistas, afinal, que dedicaram tempo e talento à confecção dessas obras, artistas que viviam das encomendas que lhes chegavam, e não merecem ter seu esforço moído em pedacinhos. Se me coubesse decidir, removeria das ruas esses ícones da crueldade humana e os socaria todos em museus, como muitos analistas têm sugerido. Que fiquem lá entre paredes, na condição de peças artísticas e registros de (uma triste) época – mas não fiquem nas calçadas, não fiquem nas praças, sendo louvados e celebrados em alta voz e esbofeteando os descendentes de suas vítimas, qual se mais uma vez as esbofeteassem em plena luz do dia. 

Porque só se mete na praça a estátua de alguém para festejá-lo, reverenciá-lo, agradecer-lhe, no máximo pedir-lhe desculpas, enfim; não há plaquinha de "contextualização histórica" que grite o suficiente para abafar a glória visual de quem está ali congelado em posição heroica, impávida, invejável, desejável. Manter a visibilidade escancarada do agressor, sobretudo num quase altar, é ainda glorificá-lo ao primeiro lance d'olhos, independentemente de todo o empenho sisudo de algum texto que o acompanhe. Só se exibe em espaço coletivo o símbolo coletivo de quem desejamos ser, e nosso pacto de admiração e projeção social NÃO pode se fechar em torno dos homens-brancos-ricos-(presumivelmente)-héteros-dominadores-violentos que nos trouxeram até as mesmas mazelas que combatemos. Para um novo pacto, novos símbolos. Para segurar as bandeiras de nossas novas delegações, novas estátuas – que cantem e exaltem: as primeiras cientistas a sequenciar o genoma do coronavírus; os professores e diretores de escola, que não raro tiram do próprio bolso para fazer o trabalho caminhar; as incansáveis pietás negras, constantemente dilaceradas pelo assassinato de seus filhos; as mulheres que corajosamente denunciam seus agressores; os ativistas antirracismo e anti-homofobia; os resilientes e fundamentais recicladores de lixo; os garis; os entregadores; os orientadores de refugiados; as empregadas domésticas; os funcionários de lanchonetes, restaurantes, lojas e salões que acordam às quatro horas para estar no serviço após um trânsito de três; os pequenos editores, os pequenos livreiros, os donos de sebo, que não perdem a fé em abrir caminhos entre as pancadas do mercado; os alunos que se tornam os pioneiros da família em seguir carreira universitária, e convocam as seguintes gerações. Que se homenageiem os cidadãos reais e palpáveis, os verdadeiros desbravadores, os insistentes, os persistentes, os que chegaram (ou nem chegaram) sem escravizar braços nenhuns, sem pisotear, sem oprimir, e bem ao contrário: erguendo e apoiando todos os que encontraram no percurso.

Quanto mais cedo pararmos de dar moral para antigos embustes de metal e pedra, mais cedo nos concentraremos em tratar dos corações de carne que realmente merecem – mas que por isso mesmo não habitam – o pedestal.

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