segunda-feira, 6 de julho de 2020

Pelos sepultadores

Estátuas de anjos Foto stock gratuita - Public Domain Pictures

Sim, é preciso lembrá-los, e o padre que ontem celebrou a missa televisionada bem os lembrou, carinhosamente os lembrou. É preciso pensar nos sepultadores – nos literais; não nos que vão erguendo a História e varrendo para debaixo tudo que não dá gosto à memória e à vista. É preciso zelar pelos sepultadores denotativos que descem à terra as vítimas de sepultadores conotativos, e que têm o último contato com a realidade desta máquina breve que habitamos.

É preciso cuidar, em todos os sentidos, da saúde dos que lidam com o fim da saúde, dos que estão expostos ao vírus sem mesmo terem a chance e o consolo de guerrear pela vida. Heróis de jaleco labutam, pelejam, se esfalfam na trincheira, também caem, também tombam de alma e de corpo, e no entanto são reconfortados pelo prêmio de vencer muito, de triunfar contra o invisível, de escoltar entre palmas outros vencedores. Sepultadores, não. Não há vitória prevista para os sepultadores; a batalha já chega batalhada e perdida, o pulso interrompido, o ar definitivamente cessado – silêncio. O silêncio em que não existe angústia de incerteza, mas tampouco a teimosia da possibilidade. Pensemos nos sepultadores, pensemos naqueles que trabalham diariamente – e cada vez mais frequentemente, e já quase ininterruptamente – em herdar derrotas.

Pensemos nos sepultadores e em sua terrível consternação de saber que, não bastasse nunca ter havido suficientes vagas para os vivos, agora não as há para os mortos. Pensemos nos sepultadores e no peso tristíssimo de sua carga, eles que usam a terra ao contrário do pedreiro, eles que são operários de desconstrução, que veem estruturas ruir em vez de erguer-se. Pensemos na também desestruturante dor física dos sepultadores, na dor de quem se curva 40, 50, 70 vezes por dia ante a finitude do seu e de outros corpos. Pensemos no talvez pior padecer mental, na humilhação de serem ironizados pelo suposto chefe do país, na consciência da fragilidade de suas proteções, nos preconceitos vindos daqueles mesmos a quem prestam seu insubstituível serviço, na perplexidade diante das famílias envenenadas de fake news que querem escarafunchar caixões, no sofrimento permanente de ver o sofrimento. Pensemos no pouquíssimo que testam, no pouquíssimo que pagam e no muito, no excessivo que exigem dos sepultadores. Pensemos nas quase impossíveis ilusões, nas horas sobrecarregadas, nos braços dormentes do moto-perpétuo. Pensemos no custoso e insalubre das exumações, na angustiante matéria dos sonhos, nos temas de conversa aflitivos, na invisibilidade social, na ansiedade, no desprestígio, nos maus cheiros e piores julgamentos. Pensemos, pensemos nos sepultadores e em sua essencialidade nada invejada, em sua grandeza desrespeitada, em sua valentia subestimada, em sua resiliência esquecida, em sua desértica, esgotante solidão. 

Todo o nosso imbastante agradecimento, a nossa ternura aos irmãos sepultadores – anjos ocultos de resistência que ali estão sempre, esperam sempre, para que não falte a ninguém o decoro de uma última acolhida. Que a eles a acolhida também não falte, agora, já, em vida, urgente, imediata, completa, a fim de se demorar ao máximo a definitiva. Amor pelos sepultadores, reverência aos sepultadores, que não podem JAMAIS ser envolvidos no pacote de ignorância indevidamente destinado à indesejada que mais teimamos em ignorar.

Nenhum comentário: