sexta-feira, 3 de julho de 2020

Eu não sou uma sonhadora

HD wallpaper: spark, wonder, girl, woman, sparklers, dream, dreamy ...

A voz instigante da personagem Ângela, do romance clariceano Um sopro de vida, super me representa ao afirmar: "Eu não sou uma sonhadora. Só devaneio para alcançar a realidade". 

Não, eu não sou uma sonhadora, embora devaneadora sempre tenha sido. Desde criança não me concentro; as boas notas disfarçavam, mas, para cada dez minutos de algum estudo que prestasse, eu me alongava por três horas em outros mil passeios mentais: e se eu montasse uma casinha no quintal, e se descobrisse como fazer um tearzinho, e se fosse dona de uma escola diferente no futuro, e se arrumasse um jeito de mandar uma bonequita de papel em viagem pelo mundo. Mas não eram propriamente sonhos, vale notar. Metade era pura brincadeira cerebral que, como diria Lulu Santos, não tinha a menor obrigação de acontecer – e a outra metade eram algumas vontades, eram alguns projetos mais ou menos vagos, pensados muito mais como distração ou atividade imediata do que como necessidade do espírito. Em suma: ou eu divagava sobre coisas irreais demais para serem sonhos, ou me divertia simplesmente "decidindo" o que faria de fato. Ou eu espairecia pensando no irrealizável, ou começava a moldar o realizável. Não sonhava; pirava ou fazia. 

"Ter um sonho" – não sei como é para vocês – me soa curiosamente doloroso, por parecer um meio-termo que reúne o que há de pior no delírio e no projeto: é fundamental demais para se contentar com o primeiro e longínquo demais para caber no segundo. Sonho é uma necessidade que dói, e definitivamente não simpatizo com a dor. Quero querer o que posso efetivamente buscar por algum caminho, ou ajudar a construir com minhas pedrinhas, ou acreditar que as pedrinhas da coletividade se encaminham para construir; é raríssimo que eu perca sangue e sal desejando, em fogo, algo que more absolutamente fora de qualquer viabilidade, qualquer controle (talvez com uma única exceção: sonho ganhar na loteria, sonho ardentemente – até porque isso passaria para a gaveta de "projetos" alguns delírios). Juro, no entanto, que nada levo de pessimismo; ao contrário: por não achar apetite na dor, tendo a tomar o partido das possibilidades. Entre ser possível ou não, prefiro que sim. Entre ser esperável ou não, escolho que seja. Não sou nem a alma romântica que se muda para castelos inabitáveis, nem a que se gasta sofrendo pelo inatingível, mas sou a que confia alegremente em alternativas, criatividades, macgyverismos, portas ainda não abertas, estradas subestimadas, soluções. Nada de soluços.

Basicamente não sonho, creio eu: ou pretendo ou me distraio. E pretendo, firme, ver um país menos canalha quando ele tiver vencido e expurgado o atual círculo do inferno; pretendo ver abatidas as desigualdades que esta primavera das ruas começou a derrubar; pretendo ver o "governo" da morte tão arrancado de seu trono quanto as estátuas escravistas de seus pedestais; pretendo ver a falta de lógica espezinhada pela ciência, a verdade metendo o pé no peito das fake news, os mentirosos engolidos pela onda de consequências, os monopólios de comunicação quebrados pela maior experiência dos futuros líderes, as vacinas desenvolvidas em tempo recorde, os fascismos esmigalhados, os fascistas punidos, a história escrita e estudada em novos moldes, em novos termos. Não é de sonhar que se trata, nem de ficar à espera; não há tempo para o abstrato. Temos urgências. Sonho demora, sonho é etéreo, sonho a gente não controla, sonho é subconsciente, sonho se estende em "ahs", "ohs" e "ses", sonho cansa. Sonho é muito afastado. Sonho senta à janela para ver a banda passar e às vezes se atrasa demais para as coisas de amor. 

Não, não nasci para sonhadora; talvez para fazedora (de bocadinhos minúsculos) e acreditadora. Sou substantivo simples, comum, primitivo – mas concreto.

Nenhum comentário: