quinta-feira, 30 de julho de 2020

Kairosclerosis

Banco de imagens : mar, pessoa, menina, mulher, cabelo, fotografia ...

Já em criança eu curtia nomes e seus significados; tinha um livro cheio de uns e de outros (provavelmente herdado de meus pais ou irmã, e em estado avançado de despencância), ficava ali horas banhada de substantivos, curiosa de sons e origens. Quem hoje tem a desventura de ser meu aluno conhece bem meu amor pelos nomes, digamos, pitorescos – já que não sou daquelas de fazer frase com "João" e "Maria", não, senhores; meto logo um "Godofreda", um "Dagoberta", um "Asclépio" e iguais maravilhas da nomenclatura, senão não vejo suficiente graça. (Fique dito, claro, que jamais faria isso com um pobre filho inocente, apesar das apreensões de meus alunos a respeito do bem-estar de meu suposto herdeiro. Não tenho a menor dificuldade em dar ao personagem o que é do personagem e à vida real o que é da vida real, e se tivesse um rebento batizaria a criaturinha da maneira mais simples; mesmo perguntas como "é com um n ou dois?", "é com s ou com z?", "tem acento?" seriam desde o início desarmadas, antes que explodissem na cara da criança desde as primeiras alfabetizações.)

Dado esse amor de décadas pelos substantivos, era natural que eu me pegasse totalmente deslumbrada ao descobrir a criação de uma joia chamada Dicionário das tristezas obscuras (The dictionary of obscure sorrows), pela qual estou arriada dos quatro pneus já no título. A lindeza existe há pelo menos quatro anos e foi inventada pelo designer gráfico norte-americano John Koenig, que simplesmente decidiu conceber nomes para sentimentos muito frequentantes de nossa psiquê, porém difíceis o bastante de ser verbalizados, tanto assim que até então – ou até onde se sabe – ninguém tentara providenciar um batismo. Koenig saiu misturando prefixos, radicais, etimologias e veio com uma coleção fascinante de termos que poderiam estar num livro escolar de Harry Potter: adronitis (frustração com a quantidade de tempo necessária para se conhecer alguém verdadeiramente), lethobenthos (tendência de esquecer o quanto uma pessoa é importante para nós até que o reencontro com ela nos relembre), occhiolism (constatação desanimadora da grande limitação de nossa própria perspectiva), nodus tollens (sensação de que o roteiro de vida que estamos seguindo já não faz sentido algum) e outros semelhantes feitiços, prontos para serem gritados com a varinha em riste. Adorei os verbetes todos e vou certamente tornar a eles, mas gostaria sobretudo de dar um primeiro abraço na melancólica e doce kairosclerosis – que parece nome de doença sem ser, e sem, no entanto, deixar de beliscar o coração com empenho.

A palavra, segundo John Koenig, vem do grego kairos ("momento oportuno") + sclerosis ("endurecimento"), e nomeia uma emoção pontual e complexa: aquela percepção que temos, em determinado instante, de estarmos sendo perfeitamente felizes; o consequente e consciente desejo de aproveitar essa sensação; a contextualização e intelectualização do momento de felicidade, de modo que a felicidade em si, purinha e legítima, acaba se dissolvendo num tipo de retrogosto. Impossível não rolar identificação. Apesar de enamorada de aves, flores, estrelas, Romantismos literários, doçuras em geral, sou raramente capaz de me entregar ao entusiasmo da experiência sem que a racionalidade esteja sussurrando em off: olhe, guarde isso, é tão rápido, vai acabar. Gostaria às vezes de desligar por segundos a chavinha superegoica, a praticidade muito forte e inerente, e por alguns segundos ser só a imersão e a imensidão sensorial da felicidade, a plenitude sem tensão, sem lamento, sem preocupação cerebral de fazer fotos e álbuns eternos do nirvana. Gostaria de mergulhar em sebos e bibliotecas num mundo privado de relógios, de horários de abertura e fechamento, de gente que atende, observa, espera. Gostaria de assistir a musicais muito amados ou passear em cidades muito amadas sem a responsabilidade de estar realizando o sonho de toda uma vida. Gostaria de só contar, durante um milionésimo de existência, com o extremo abandono a essa inocência de tudo, a fruição sem o peso filosófico do carpe diem, o descompromisso com roteiros, a ausência completa de expectativas – especialmente alheias –, a brincadeira apenas: a brincadeira autenticamente infantil, tão centrada em si que se isenta de tudo o mais. Esse brincar interior tão íntegro que não me lembro de tê-lo vivido sem qualquer grau de kairosclerosis nem mesmo na infância.

Não quer dizer que não tenha sido feliz. Ao contrário: fui feliz ao longo de bem mais que 90% do tempo, e sempre o soube. Ainda assim devo sublinhar, em causa própria, que constantemente nossos instantes favoritos – mesmo nos dias marcados para efemérides – são aqueles em que nem a gente está olhando.

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