terça-feira, 28 de julho de 2020

Médicos e monstros

Climáticas, Mudança, Global, Aquecimento, Seca, Deserto

Interessantíssimo o artigo escrito por Humberto Maia Júnior para o TAB, uma das seções do portal UOL. No texto intitulado "Como a aceitação de que o ser humano não é bom pode nos tornar melhores", o autor basicamente demole a ideia rousseaumântica de que nossa gente nasceu linda e fabulosa, sempre teve uma relação de total broderagem com a natureza e deveria voltar a esses tempos edênicos, a esse ideal saltitante do "bom selvagem", para tomar conserto na vida. Eu concordaria feliz com Rousseau, por quem tenho simpatia, se esse ideal fofucho se baseasse no real – mas nada: "A história do Homo sapiens foi marcada por violência e destruição. A conquista dos outros continentes depois de nossa espécie deixar a África [gerou] a extinção de dezenas de aves e mamíferos. Segundo o historiador Yuval Harari [...], há 70 mil anos, 200 espécies de mamíferos com mais de 50 quilos povoavam a Terra. Em pouco mais de 50 mil anos, o número caiu pela metade. [...] O desaparecimento desses animais ocorria sempre após a chegada do homem ao habitat deles, como Austrália e Américas do Norte e do Sul". Desde o início, em suma, fomos tragédias ambulantes que arrasaram todos os quarteirões disponíveis – o que não quer dizer, é claro, que nunca tenha havido sociedades menos nocivas, mas quer dizer que de modo geral não tivemos origens nada idílicas e não adiantaria muita coisa retornarmos a um passado remotíssimo em busca de uma realidade menos predatória.

Nem poupamos jamais os semelhantes nessas nossas ganas de predador, aliás; mais adiante no texto, Maia Júnior cita o uso de estudos arqueológicos pelo psicólogo Steven Pinker, que reuniu evidências para comprovar que nossos ancestrais das cavernas não eram exatamente monges tibetanos brincando de ciranda com coleguinhas: "Os dados coletados em 21 sítios arqueológicos pré-históricos revelaram que, em média, 15% das pessoas morriam em decorrência de agressões provocadas por outros humanos. Já no século 20, que muitos consideram o período mais violento da história humana, o índice de mortes violentas não ultrapassa 3%, segundo estudos citados por Pinker. Detalhe: ele diz que os primeiros dados são subestimados. Como eles foram colhidos a partir de marcas de violência provocada por outros humanos em ossadas encontradas nos sítios, não é possível computar, por exemplo, mortes por envenenamento". Sim, eu também fiquei surpresa com a robustez numérica e científica desse mergulho em nossa ascendência de feras, porém não posso alegar ter-me surpreendido com a conclusão em si. Por mais que os saudosistas do Paleolítico (o literal e o figurado) adorem evocar os outroras como épocas de ouro, ai-que-saudades-que-tenho, naquele tempo é que era bom – eu nunca tive a mais longínqua dúvida de que, apesar de tudo, estamos melhores do que quer que já tenhamos sido, e continuamos melhorando.

OK, somos lamentáveis, mas a boa e a má notícia é que estamos no auge em relação ao que fomos. Nem precisamos ir longe na história ou buscar situações de se chegar às vias de fato. Agora há pouquinho mesmo ressurgiu, nas redes, uma reportagem feita para um telejornal da Globo no início dos anos 90, a respeito da participação de pessoas comuns – que não fossem superaltas, supermagras, superbelas etc. – em comerciais e afins. A linguagem, a postura, é tudo absolutamente podre; o repórter pergunta a uma transeunte se ela acha que "aquela gordinha ali", sentada à mesa de um shopping, poderia estrelar uma campanha publicitária, e a entrevistada denota tanta perplexidade como se lhe houvessem pedido para explicar em uma frase a física quântica: claro que não, nem pensar, que ideia. Em seguida o rapaz vai até a própria "gordinha" e revela ao espectador que ela encontrou inspiração na própria "feiura" (!! trata-se de uma LINDA mulher, por sinal – não que isso faça diferença) para criar uma agência de modelos fora do padrão etc. etc. Estou até agora de queixo desabado com a coleção assombrosa de desrespeitos e preconceitos reunidos em tão poucos segundos de matéria. E isso foi ontem, foi há 30 anos, o que é historicamente ali na esquina. Se dermos um rolê por canais como o Viva, a fauna de aberrações vai na mesma linha: racismo explícito nos Trapalhões, machismo afrontoso em velhas novelas e humorísticos, homofobia nojenta em quase todos os programas dos dois mil e tantos para trás. É chocante e assustador, mas de certa forma também acalenta, porque materializa e escancara por contraste a nossa (rápida) evolução. 

Ninguém conceberia, right now, um quadro como o do Nazareno de Chico Anysio (lembram? aquele que tratava a esposa feito lixo – "Ca-la-da!" – para se engraçar com alguma boazuda que trabalhasse em sua casa), ninguém mais colocaria um "Cala a boca, Magda!" na voz de um personagem, ninguém cogitaria criar uma interação como a de Jorge Dória e Lúcio Mauro Filho no Zorra total de priscas eras, em que ainda era considerado engraçado um pai se envergonhar da orientação sexual de seu filho e perguntar-se em bordão: "Mas onde foi que eu errei?!". Erramos hoje ainda muito, muitíssimo, porém também é evidente onde acertamos. Em coisa de duas ou três décadas, entendemos finalmente que humor bom é aquele que ri do opressor e não do oprimido, aprendemos a exaltar e valorizar todo tipo de beleza (work in progress, mas já avançadíssimo em comparação com as barbaridades que cometíamos), temos uma quantidade infinitamente maior de casais LGBTQIA+ na ficção e na propaganda, educamo-nos para varrer da linguagem termos pejorativos dos quais recentemente nem tínhamos consciência, estamos cada vez mais paramentados para reconhecer e denunciar relacionamentos abusivos, incluímos na educação regular e em outros espaços sociais um número crescente de pessoas autistas, com síndrome de Down etc. – pessoas estas que, no fim recentíssimo do século passado, ainda permaneciam tão afastadas das possibilidades de convívio. Para saber o quanto somos problemáticos, rixentos, treteiros, discutíveis, conturbados, é facílimo: basta dar uma chegadinha à janela do Face, do Twitter ou qualquer outra aberta para suspirar de desgosto. Mas, para escaparmos às manhas do desânimo que enreda, convém espiar sobre os ombros, olhar de revestrés para a estrada percorrida, chocar-nos docemente com a montanha de absurdos superados. Apesar do refluxo inevitável, o fluxo é evidentíssimo e depõe a favor do futuro.

Quanto a este, ao menos, Maia Júnior concorda que Rousseau mandou bem na leitura: "Se ele errou na ideia de que somos naturalmente bons, acertou em cheio ao apontar uma característica que distingue os humanos dos outros animais: a perfectibilidade, ou seja, a capacidade de se aperfeiçoar ao longo da vida". Não só capacidade, digamos; temos mesmo a vocação e a tarefa coletiva de melhorar, em honra ao material único de que somos feitos, inimitável demais para ser fadado à mera devoração recíproca. E temos também a dívida longa e ferozmente contraída com o planetinha que vem aturando, há milênios, a selvageria destes seus inquilinos – dívida a ser parcelada em pouquíssimos séculos e paga com empenho, ciência, juros e correção humanitária.

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