domingo, 12 de julho de 2020

Todas as competições são ridículas

Imagem gratuita: amor, pedras, jogo, junto, vitória, giz, lousa ...

Confesso a fraqueza de não gostar de esporte – nem de ver, nem de praticar. E não é só por inabilidade física, embora realmente a tenha (o que não seria mesmo prova, já que tenho a mesma inabilidade para, sei lá, o balé clássico sem deixar de adorá-lo); a bem da verdade, detesto jogos e competições em geral. Joguei pouquíssimo videogame na vida, e o pouco jogado não o foi com muita paciência; jogos de tabuleiro, alguns, mas na infância e início da adolescência no máximo; de baralhos (até virtuais) nem chego perto. Competições só fazem deixar-me mais nervosa, tensa e autoexigente, sem compensar esse envenenamento de adrenalina com qualquer dose significativa de prazer. Mesmo como espectadora não acho nenhum encanto, bem ao contrário: inexiste a paz da neutralidade, torcer me parece inevitável, seja futebol ou reality – e torcer leva ao medo, que leva à raiva, que leva ao lado sombrio da Força. Investir interesse, afirmação, gratificação pessoal no ato de derrotar alguém (ainda que terceirizadamente, por meio de nosso time ou do participante de nossa escolha) sempre me soou absurdo, um absurdo de que infelizmente nem sempre escapei, mas que evito tanto quanto possível. Disputas, creio, servem simplesmente para ativar o que há de esgoto no ser humano, desde as ninhariazinhas brigadas até o horror extremo das guerras. 

"Puxa, mas a raça humana se aprimora com a competição." O cacete. Biologicamente, vá lá, mas é algo orgânico e involuntário. No que depende da estrita razão, fomos programados para colaborativos e não para competitivos; competimos de burros que somos, e em nome de pódios inventados nos destruímos compulsivamente: são corpos e corações sacrificados desde os primeirinhos anos atrás de uma "perfeição" buscada com dores, fomes, invejas, abusos, solidões; são músculos, nervos e cérebros estropiados na juventude, para alimentar a morbidez do sistema; são acidentes fatais em prol de uma placa, uma taça de metal, um recorde impresso num livro; são mil surtos, mil descontroles de identidades que se condicionam a existir na e para a "vitória" – torcidas que se massacram, pelejas de trânsito que acabam em tiro, discussões de bar que terminam na seção de homicídios, querelas de líderes mundiais que arrastam milhões para o abismo doido de seus orgulhos machucadinhos. "Nããão, mas coisas como o esporte ensinam disciplina, salvam muitas vidas." Sim, é claro que há partes boas, porém não se pode negar que o esporte profissional é também uma indústria, uma indústria cega e exigente de exploração física – com muito dinheiro rolando para poucos (entre os quais não estão necessariamente os donos dos corpos mais sacrificados) e várias, várias, várias vítimas sugadas no processo, oferecidas no altar dos poderosos. Para o objetivo de disciplina e salvação de vidas, o crucial é a educação em si, a justiça social, as mínimas condições de igualdade que permitam a todos reais oportunidades em todos os campos, e não apenas boias eventuais. "Aaaah, mas é fundamental que as crianças aprendam a competir, mesmo que percam; dá caráter." Balela. O que dá caráter é boa criação, felicidade, amor. Ninguém, para isso, precisaria das disputas. É largamente hipócrita usar o velho "o importante é competir", quando TODO o mundo ao redor mostra que não: nem todos os competidores são lembrados, celebrados, afagados, medalhados; existe inevitavelmente a hierarquia histórica, e ninguém pode culpar uma criança por basear seus sentimentos e autocobranças mais no que vê do que no que lhe repetem. O discurso da competição é tão xarope quanto a prática é impiedosa.

Não defendo que se criem pessoas que não saibam perder. Defendo a criação de pessoas num mundo em que não exista perder. Ou antes: um mundo no qual só exista o perder verdadeiro, o incontrolável – já não bastam doenças, mortes, acidentes e fenômenos naturais, amores não correspondidos, dilemas de vocação?... –, sem qualquer necessidade de incrementarmos o repertório de angústias e sofrimentos compulsórios inventando aborrecimentos. "Pô, mas então você quer a utopia!" Quero. Quero a utopia, e nunca assinei nada que me obrigasse a não querer. Quero, sim, um planeta novinho (pode ser neste aqui mesmo) em que a competição esteja absolutamente fora de moda e as pessoas no máximo se inspirem, se emulem, espiando os demais para aperfeiçoar-se e não para superá-los. Quero que tudo diferente da plena colaboração seja considerado cafona, ultrapassado, inútil e ridículo; que se pare de perder tempo com desavenças e se prefiram os desafios; que a descoberta diária de meios para todo mundo vencer e se dar bem vire o trofeuzão da humanidade. "Deixa de ser cretina, isso é impossível." Dane-se que é impossível: um cacetalhão de empreendimentos já foi. Por agora, pensar num grande organismo pulsante por interesses comuns, em lugar de um sistema que se alimenta de desigualdades, soa unicórnico; sei disso, mas desconfio também que I'm not the only one. Ventos mudam, e sempre acreditarei menos no passinho que damos para trás do que no passinho e meio para frente, a cada ano, a cada década. "Mesmo com tudo isso que está aí?" Mesmo. Tudo isso que está aí ainda seria ambientado na Idade Média, se não fôssemos capazes.

Por enquanto, vou trabalhando com meus pares tijolinhamente, sem cronômetro e com uma linha de chegada projetada para bilhões. Minha geração não vai chegar ao fim do revezamento, nem a outra nem a outra nem a outra, mas ninguém perde: todos somente passam o bastão no mesmo percurso, até que as gerações concluintes batam por nós a meta. Afinal, quem aqui está disputando?

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